Fantasia para piano de J. Wieniawski sobre “La Sonnambula”
No presente artigo tratarei de uma obra para piano integrante da pesquisa que venho realizando acerca das paráfrases pianísticas sobre temas das óperas de Vincenzo Bellini (1801-1835). Trata-se da Fantasia de Józef Wieniawski (1837-1912) sobre a Ópera “La Sonnambula”. Apresentarei algumas considerações gerais sobre a obra e ao final disponibilizo a gravação que fiz da peça.
1. As paráfrases pianísticas
Durante o século XIX difundiu-se no meio musical europeu a publicação de transcrições operísticas, contribuindo à disseminação de trechos de óperas tanto em espaços privados como públicos. Na Itália e na França, particularmente, houve um grande número de arranjos musicais para tal repertório, tanto para piano solo como também para formações instrumentais de câmara. [1]
Os dois principais pianistas-compositores do período, Franz Liszt (1811-1886) e Sigismond Thalberg (1812-1871), que chegaram a competir entre si pela fama de principal pianista da época, também se dedicaram amplamente à escrita e à execução de peças musicais compostas como paráfrases ou como transcrições de óperas famosas, especialmente as italianas. As paráfrases são aquelas peças em que o compositor se apropria livremente do material original e elabora uma espécie de fantasia sobre ele. As transcrições, por sua vez, são apenas uma recriação da obra original, ou apenas uma transposição da escrita vocal ou orquestral para o piano.
No século XIX esse tipo de obra pianística cumpria um duplo papel, pois servia tanto como uma espécie de “gravação”, permitindo ao público ouvir constantemente as conhecidas melodias executadas nos teatros, como também se direcionava à exibição individual dos pianistas, fato que conecta tal repertório diretamente ao desenvolvimento técnico do piano. Johannes Brahms (1833-1897) chegou a reconhecer que as paráfrases operísticas de Liszt, por exemplo, estabeleciam o verdadeiro classicismo do piano. [2] A partir do século XX, com o surgimento do mercado fonográfico e com o crescimento insistente da chamada execução “autêntica”, as fantasias e arranjos em geral caíram em desuso, passando a ser considerados como uma classe de música inferior, levando a que se ignorasse um grande tesouro musical. [3]
2. “La Sonnambula”
Uma das óperas que emprestou bastante material musical para obras pianísticas foi “La Sonnambula” de Vincenzo Bellini, estreada no Teatro Carcano (Milão/Itália), a 6 de maço de 1831, tendo nos papéis principais a grande soprano Giuditta Pasta (1797-1865) e o grande tenor Giovanni Battista Rubini (1794-1854). Célebres pianistas como Liszt, Thalberg, Henri Herz e J. Wieniawski escreveram paráfrases para piano sobre temas da “Sonnambula”.
A ação dessa ópera se passa em uma vila suíça no início do século XIX. Amina (Soprano), filha adotiva de Teresa (Mezzo-Soprano) – dona do moinho da vila – comemora seu noivado com Elvino (Tenor), um jovem e rico fazendeiro. Durante os festejos, chega um misterioso estrangeiro, que é, na verdade, o Conde Rodolfo (Baixo), que retorna à vila de sua infância depois de muitos anos. O Conde hospeda-se naquela noite na hospedaria da vila, cuja proprietária é Lisa (Soprano), apaixonada por Elvino. Ninguém sabe, mas Amina é sonâmbula e justamente naquela noite perambula pela vila chegando até o quarto em que o Conde está hospedado. Vendo a moça em sonambulismo, o Conde discretamente se retira, mas a presença dela no quarto é descoberta por Lisa e revelada a Elvino. Amina acorda, não consegue explicar sua presença no quarto do Conde e Elvino rompe o noivado com ela. O Conde posteriormente procura explicar o que ocorreu, mas os habitantes da vila ignoram o que é sonambulismo e não acreditam nele. Amina surge, então, novamente perambulando sonâmbula sobre um velha ponte do moinho e a verdade se torna evidente a todos. Amina desperta, reconcilia-se com Elvino e a ópera termina com nova festa no vilarejo. [4]
O grande Beniamino Gigli (1890-1957), talvez o maior tenor do século XX, que cantou o papel de Elvino no “Metropolitan” de Nova York em 1932, fez a seguinte observação sobre essa Ópera: “Ainda que contenha alguns dos fragmentos musicais mais belos de todas as óperas … ‘La sonnambula’ raramente é apresentada, pela simples razão de que o principal papel de soprano é de uma excessiva dificuldade e as cantoras preparadas para satisfazer suas exigências são raramente encontradas.” [5]
3. Józef Wieniawski (1837-1912)
Józef Wieniawski foi um grande pianista e compositor, nascido em Lublin (Polônia) em 23 de maio de 1837. Estudou no Conservatório de Paris a partir de 1847, sob orientação de mestres como Pierre-Joseph-Guillaume Zimmerman (1785-1853) e Antoine François Marmontel (1816-1898). Viajou entre 1851 e 53 pela Europa dando concertos com seu irmão, o grande violinista Henryk Wieniawski (1835-1890). Entre 1855 e 1858 estudou em Weimar com Franz Liszt (1811-1886) e em Berlim com Adolf Bernhard Marx (1795-1866). Viveu novamente em Paris, tendo contato com compositores como Rossini, Gounod e Berlioz, e a partir de 1866 passa a ocupar o cargo de professor no Conservatório de Música de Moscou, alternando posteriormente trabalho e permanência também em Varsóvia e Bruxelas. Dedicou-se à composição, escrevendo várias obras para piano. [6] Morreu em Bruxelas, em 1912. Uma dessas suas obras para piano é a que apresento na sequência. Trata-se da “Fantaisie et variations de concert pour piano sur des motifs de la ‘Somnambula’ de Bellini”.
4. A Fantasia
Essa Fantasia consta como Opus 6 no catálogo de obras de Józef Wieniawski. Foi publicada em 1854, sendo dedicada à Sua Alteza Real, o Duque Maximiliano da Baviera. Pela data de publicação, supõe-se que se trate de Maximiliano II, Rei da Baviera entre 1848 e 1864. A Fantasia é dividida em quatro seções bem distintas, ainda que sejam executadas ininterruptamente:
- Introdução, molto capriccioso.
- Tema. Allegro moderato – Variação 1 – Variação 2
- Adagio – Allegro
- Finale. Allegro risoluto – Presto
Wieniawski utiliza nas partes 1 e 2 o tema da cabaleta “Sovra il sen la man mi posa”, da personagem Amina no Ato I de “La Sonnambula”. A Parte 1 da Fantasia é uma seção introdutória em que a frase inicial do referido tema de Bellini é apresentado de modo livre, intercalando-se sempre elementos de brilhantismo/virtuosismo (cadências, escalas, arpejos etc.). Na Parte 2, o mesmo tema de Bellini é praticamente transcrito integralmente e seguido por duas variações sobre ele. No número musical original da Ópera, Amina manifesta à sua mãe e aos seus amigos da vila a grande alegria que seu coração sente pelo seu noivado com Elvino. Indico abaixo, com a respectiva tradução Italiano-Português, esta famosa cabaleta na interpretação da soprano Anna Moffo (1932-2006):
AMINA Sovra il sen la man mi posa, Palpitar, balzar lo senti: Egli è il cor che i suoi contenti Non ha forza a sostener … CONTADINI Di tua sorte avventurosa teco esulta il cor materno: il materno cor. Non potea favor superno Riserbarlo a ugual piacer. | AMINA Coloca sobre meu peito a mão, sente-o palpitar e saltar: É um coração cuja alegria Não consegue conter … ALDEÕES Com teu feliz destino se regozija o coração materno, o materno coração. Não podia o favor dos céus Destiná-lo a uma alegria maior. |
Na Parte 3, Wieniawski apresenta um outro tema da Ópera e também o desenvolve sob a forma de variação. Trata-se agora de um famoso conjunto vocal que é cantado próximo ao final do Ato I de “La Sonnambula”. É o quinteto “D’un pensiero, d’un accento”. Na trama da ópera, é o momento em que Amina desperta do estado de sonambulismo no quarto do Conde na hospedaria, sendo acusada de traição por Elvino e pelos demais aldeões. Esse número musical tornou-se muito famoso e é empregado também por Liszt e por Thalberg em suas respectivas paráfrases sobre “La Sonnambula”. Indico abaixo esse trecho com a respectiva tradução:
AMINA D’un pensiero e d’un accento Rea non son, rea non son né il fui giammai. Ah! se fede in me non hai, Mal rispondi a tanto amor. ELVINO Voglia il cielo che il duol ch’io sento Tu provar, tu provar non debba mai! Ah! tel mostri s’io t’amai Questo pianto del mio cor. AMINA Ah mel credi, ah! rea non sono. Mel credi, rea non sono nè il fui giammai, Ah! Se fede in me non hai mal rispondi a tanto amor. CONTADINI (ad Amina) Il tuo nero tradimento è palese e chiaro assai. ELVINO Traditrice! Da me ti scosta! Spergiura! AMINA Ah, mel credi! Ah, rea non sono! Sventurata! LISA (Ad Amina) Il tuo nero tradimento è palese e chiaro assai. TERESA (difendendo Amina) Deh! l’udite un sol momento: Il rigor eccede omai. CONTADINI In qual cor, in qual cor più, ah! se quel cor fu mentitor? LISA, TERESA In qual cor fidar più mai, se quel cor fu mentitor? ecc. ELVINO Voglia il cielo, voglia il cielo che il mio tormento tu provar, tu provar non debba mai! Ah, tel dica s’io t’amai questo pianto questo pianto del mio core, ecc. | AMINA Nem de pensamento, nem de palavra sou eu culpada, sou eu culpada nem jamais fui. Ah, se não acreditas em mim, correspondes mal a tanto amor. ELVINO Queira o céu que a dor que eu sinto jamais tenhas que sofrer! Ah, que te diga se te amei o pranto de meu coração. AMINA Ah, crê em mim, não sou culpada, crê em mim, não sou culpada nem jamais fui, Ah, se não acreditas em mim, correspondes mal a tanto amor. ALDEÕES (a Amina) Tua pérfida traição está bem clara e evidente. ELVINO Traidora! Afasta-te de mim! Desleal! AMINA Ah, crê em mim! Ah, não sou culpada! Ó infeliz! LISA (a Amina) Tua pérfida traição está bem clara e evidente. TERESA (defendendo Amina) Escutai-a um só momento: Excessiva é a vossa ira. ALDEÕES Em que coração, em que coração confiar? Ah! se seu coração foi mentiroso? LISA, TERESA Em que coração confiar, se mentiu seu coração? etc. ELVINO Queira o céu queira o céu que meu tormento jamais tenhas que sofrer! Ah, que te diga se te amei este pranto este pranto de meu coração. |
A Parte 4 é quase inteiramente original de Wieniawski, sendo apenas introduzida por um tema de Bellini: o início de “Ah! perchè non posso odiarti”, trecho cantado por Elvino no Ato II de “La Sonnambula”. O restante é um Presto de grande brilhantismo.
Disponibilizo abaixo a gravação que eu mesmo fiz da Fantasia de Wieniawski sobre “La Sonnambula”:
Nos cum prole pia – benedicat Virgo Maria.
Referências
BROWN, H. M.; ROSAND, E., STROHM, R.; NOIRAY, M.; PARKER, R.; WHITTALL, A.; SAVAGE, R.; MILLINGTON, B. Opera. In: The New Grove Dictionary of Music and Musicians. New York: Macmillan, 2001.
ECKHARDT, M.; MUELLER, R. C.; WALKER, A.. Liszt. In: The New Grove Dictionary of Music and Musicians. New York: Macmillan, 2001.
GIGLI, Beniamino. Memorias de Beniamino Gigli. Buenos Aires: Ediciones Troquel, 1957
OSBORNE, Charles. The Bel Canto Operas of Rossini, Donizetti, Bellini. Porland: Amadeus Press, 1994.
SCHMIDL, Carlo (Org.). Dizionario Universale dei Musicisti. Milão: Ricordi, 1887.
WATSON, Derek. Liszt. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
+LAUS DEO VIRGINIQUE MATRI+
Notas:
[1] BROWN et al., 2001.
[2] WATSON, 1994.
[3] ECKHARDT; MUELLER; WALKER, 2001; ROSEN, 2000.
[4] OSBORNE, 1994, p. 332-336.
[5] GIGLI, 1957.
[6] SCHMIDL, 1887, p. 525.