Roteiro de estudo para cantores líricos

Roteiro de estudo para cantores líricos

1. Introdução

Um estudante de canto, e mesmo um cantor profissional, precisa ter um roteiro de estudo para a prática do seu repertório. Fazê-lo não deve ser considerado uma perda de tempo, mas sim uma necessidade de quem pretende se aperfeiçoar cada vez mais na arte do bel canto — do belo canto, do bem cantar.

O canto lírico é uma arte que eu acho fascinante, pois ele é o resultado da excelência do canto através de uma técnica que aperfeiçoa a voz humana cantada, potencializando até seu máximo vários pontos, tais como: timbre, ressonância, tessitura, dinâmica, projeção, cor etc. Não há como negar o êxtase que sentimos ao ouvir uma canção bem interpretada por um artista que tenha sua técnica vocal aprimorada até os seus limites.

2. Cantar exige dedicação

Muito se engana quem acha que um cantor lírico não precisa se dedicar tanto à sua voz, ao seu repertório e ao estudo de informações tangentes e adjacentes ao mesmo. A voz precisa de treinos diários para aprimorar a técnica; o repertório precisa ser escolhido com sabedoria de acordo com o nível de desenvolvimento do cantor; e é desejável que o estudo siga algum tipo de roteiro para estabelecer um aprendizado eficiente e satisfatório das obras estudadas.

Elaborar e executar um bom roteiro de estudos pode ser um tanto trabalhoso, mas vale a pena. Ao final, sentimos mais segurança, autoconfiança, ganhamos mais conhecimento e aprimoramento vocal e interpretativo.

3. Elaborando um roteiro de estudo de canto lírico

Este roteiro não é algo fixo, mas eu costumo fazer um determinado processo ao iniciar o estudo de uma obra. Deixo o meu processo como uma sugestão para o seu estudo. De qualquer forma, você pode adaptá-lo de acordo com as necessidades do seu repertório.

3.1. Definição de um repertório adequado à sua voz

Parece óbvio, mas definir um repertório adequado à sua voz fará toda a diferença no seu aprendizado. Repertórios aquém da sua voz não vão favorecê-la. Por outro lado, repertórios não compatíveis com a sua voz podem ser prejudiciais em dois aspectos:

  1. Ou por serem ineficientes para o seu estudo;
  2. Ou por prejudicarem sua voz caso você tenha problemas técnicos de base mal resolvidos.

Talvez você possa estar se perguntando “mas como escolher um repertório adequado?” O ideal mesmo é que você possua um bom professor de canto para isto. Porém, na falta de um orientador vocal, você pode se fazer algumas perguntas básicas, tais como:

  1. Esta peça é adequada para minha tessitura vocal?
  2. Esta peça trabalha alguma dificuldade técnica que eu possuo?
  3. A peça em questão exige demais da minha voz, além do que eu consigo realizar no momento?

A escolha da tessitura é importante porque se a tessitura da peça musical for inadequada (ou muito aguda ou muito grave), você pode prejudicar a sua voz. Alguns danos vocais podem ser desde edema, fadiga vocal, até pólipos e nódulos vocais. Então é muito importante prestar atenção a este ponto.

Se a peça trabalha dificuldades técnicas que você possui, isto, por si, é muito bom, porque é só assim que você vai desenvolver a sua voz. De passo em passo a voz vai sendo construída e lapidada. Portanto, procure músicas que trabalhem suas dificuldades. Mas não exagere! Trabalhe uma dificuldade por música para não sobrecarregar sua voz e seus estudos.

Se a obra musical que você escolheu está forçando demais a sua voz de modo que você se sente muito desconfortável ao final do estudo, talvez seja melhor rever seu repertório e mudar essa peça. Provavelmente você ainda precisa de maior domínio técnico e amadurecimento vocal.

3.2. Estudo geral sobre o compositor da peça escolhida

Após a escolha das peças, é desejável estudar um pouco sobre o compositor de cada uma. Quem foi? Onde viveu? Em que contexto compôs as obras? Procure saber detalhes. Pode ser curioso e também bastante divertido saber os bastidores que envolveram a criação da peça e a própria vida do compositor.

3.3. Tradução das peças e estudo dos libretos

Qualquer peça musical estrangeira deve ser traduzida se o cantor não sabe ler o idioma. Não comece a estudar a peça sem antes saber o que o texto significa.

Algumas obras, como óperas e oratórios, possuem libreto, que é um livro-guia com todas as falas dos personagens e todo o desenrolar da história. Ele também deve ser traduzido para que o cantor tenha uma compreensão geral da história.

Hoje em dia já é possível encontrar sites estrangeiros que possuem libretos com traduções, o que torna nossa vida bem mais fácil! Existem livros também que contém resumos de libretos, dando-nos uma boa noção geral da história. Geralmente, esses tipos de livros estão disponíveis em bibliotecas de universidades.

3.4. Estudo geral dos personagens

Para canções, você vai estudar o personagem principal da peça. Em geral, canções contam uma história, possuindo também um personagem. Portanto, você vai contextualizar o que está acontecendo com o personagem do texto.

Para óperas e oratórios, com mais personagens, você vai identificar todos os personagens dentro da história de forma geral e, de uma forma mais atenta, o personagem que você vai estudar. Para auxiliar, responda:

  1. Quem é o personagem principal e os personagens secundários (quando houver)?
  2. Do que a história trata?
  3. Onde e em que período do tempo ela se passa?
  4. Quais os sentimentos que cada personagem exprime no decorrer da peça? (Alegria, tristeza, melancolia, raiva, paixão etc.)
  5. Qual o caráter de cada personagem (bom, mau, honesto, vingativo etc.)?
  6. A obra é uma tragédia ou comédia?

Fechadas as respostas para essas perguntas, vamos ao estudo do personagem que você vai interpretar.

3.5. Estudo do seu personagem

Essa parte do processo vai dar o norte para a sua interpretação artística, portanto, não economize no estudo. No estudo do seu personagem você fará um pequeno estudo psicológico dele e um pequeno estudo de figurino (para personagens de ópera).

3.5.1. Estudo psicológico

Faremos o estudo psicológico respondendo às seguintes perguntas:

  1. Quem é o seu personagem e o que ele faz (nome, origem, idade, estado civil, trabalho, temperamento, caráter etc.)?
  2. Liste os principais acontecimentos que envolvem seu personagem ao longo da história (você pode fazer uma linha do tempo para facilitar).
  3. Dentro destes acontecimentos, liste os sentimentos que seu personagem exprime (amor, alegria, raiva, tristeza, medo, inveja etc) em cada ária que ele canta.

3.5.2. Estudo do figurino e roupas para demais apresentações

De acordo com o estudo psicológico do personagem, procure montar alguns possíveis figurinos que atendam aos caracteres dele. Também veja algumas montagens de óperas, fotos de espetáculos e procure pesquisar a moda da época a que remete a história contada na obra em estudo, no caso, na ópera.

Oratórios e apresentações avulsas não precisam de figurino de personagem, mas uma vestimenta adequada ao palco é requerida. O traje é de gala. Para homens, fraque, terno. Para mulheres, vestidos longos, que não sejam vulgares. Quanto à cor, geralmente o costume pede preto para essas ocasiões, mas as mulheres têm mais liberdade de cores quando são solistas.

3.6. Transcrição fonética das peças

Para cantores iniciantes e mesmo para profissionais que ainda não possuem bom domínio de línguas estrangeiras, a transcrição fonética das peças se torna essencial para se obter uma boa dicção das palavras cantadas. Nenhum cantor quer ter a desventura de cantar algo “incompreensível” para um nativo da língua da obra escolhida, certo?

Para auxiliar o processo de transcrição fonética existe o alfabeto fonético internacional, que é um sistema de representação fonética padronizada para os sons falados. Ele é extremamente útil para cantar músicas cuja língua não conhecemos e quando não há professores disponíveis para tirar dúvidas quanto à pronúncia. Sabendo o som de cada símbolo, você é capaz de pronunciar qualquer palavra, em qualquer língua.

3.7. Estudo das árias

Realizadas as etapas acima, está na hora de começar a estudar efetivamente a sua peça. Reserve pelo menos uma hora diária para estudo técnico e leitura musical. Dentro da leitura, temos a pré-leitura, que seria primeiramente verificar o tempo de compasso, o andamento da peça, a armadura de clave, o estudo da melodia e do ritmo das notas. Preste muita atenção nesta parte, porque uma vez aprendendo errado o ritmo ou a nota será bem mais complicado arrumar mais tarde. Estude lentamente até adquirir segurança melódica e rítmica.

3.8. Estudo do gestual

Gestos para palco e apresentações devem ser pontuais, devem possuir uma intenção e serem executados com elegância. Não podem ser movimentos aleatórios ou repetitivos, como chacoalhar de mãos e movimento “dançante” corporal, em que o cantor fica balançando o corpo de um lado para o outro. Além de deselegantes, eles distraem o público e prejudicam o apoio e firmeza do seu corpo durante o canto.

Para acertar e aprender os movimentos certos de cena, eu sugiro que você assista várias interpretações do papel do seu personagem com bons artistas. Observe tudo o que eles fazem, anote ou memorize os movimentos que você achou interessantes. Vá para a frente do espelho (de preferência, um espelho de corpo inteiro) e repita os movimentos cantarolando ou recitando a peça, até automatizá-los.

3.9. Estudo técnico

Você pode começar solfejando as notas. Mas, se preferir, você pode vocalizar as vogais das palavras e depois, então, cantar com a letra da música. Isso ajuda muito a treinar o legato e a condução da linha melódica.

Para ajudar o seu estudo técnico:

  1. Identifique as suas dificuldades técnicas.
  2. Trabalhe na solução dessas dificuldades identificadas.
  3. Faça treinamentos diários de, no mínimo, uma hora, dividindo entre: vocalizes técnicos, exercícios respiratórios, focando nos trechos das peças com dificuldades.
  4. Estudo rítmico/melódico/dinâmico: leia/estude com atenção até atingir a precisão da melodia e do ritmo.
  5. Estudo de dinâmica: escute os grandes cantores para ter inspirações de interpretação. Adentre também no psicológico do personagem, isto facilita o “colorir” da música.
  6. Treine sua expressividade na frente de um espelho, especialmente de corpo inteiro. A princípio a gente pode se achar muito ridículo, mas isso é devido à timidez. Depois de um tempo de treino isso vai se tornar tão natural que você até vai gostar do processo!
  7. Recite a letra sem cantar, em entonação teatral, procurando interpretar, primeiro em português (com a tradução), depois na língua original da peça. Repita algumas vezes e depois cante a música. Isso vai lhe ajudar na retenção do significado da letra, na expressividade e interpretação.
  8. Tenha um bom pianista correpetidor (coach). Ele é o profissional que pode lhe auxiliar bastante em relação à obra, ao que acontece na cena, na dicção, na orientação de algumas questões interpretativas, fraseados etc., além de treiná-lo para a apresentação em palco.
  9. Apresente para seus amigos e familiares. É a melhor forma de treinar uma apresentação de modo informal para driblar sua ansiedade, nervosismo e para aprender a lidar com a timidez. Timidez se vence, portanto, coragem! Tenha persistência e repita bastante esse processo que você chega lá.

4. Considerações finais

Esse roteiro é uma sugestão. Alguns tópicos podem ser feitos separadamente ou em paralelo, como os três últimos sub-tópicos (3.7, 3.8, 3.9), dependendo da sua facilidade de estudo.

Cantar, como eu disse lá no início, exige dedicação. Uma boa voz é formada depois de um longo percurso de treino paciente e constante. Não desista e não desanime, porque, ao final, valerá muito a pena!

Espero que este roteiro lhe ajude em seus estudos! E se você tiver dúvidas, deixe nos comentários. Terei o maior prazer em respondê-las!

Profa. Melissa Bergonso

A Professora Melissa Bergonso é Bacharel em Canto lírico pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná, e Mestre em Música pela Universidade Federal do Paraná. Tem grande experiência na área da música sacra católica, possui em seu repertório de soprano várias árias de Oratórios, Missas, Óperas e Canções de Câmara e participou também de produções locais de óperas. Dedica-se ao ensino do canto para vozes femininas e, como pesquisadora, à área de estética da música, psicologia e cognição musical, pedagogia e técnica vocal. Co-fundadora do Instituto de Música CLARITASPULCHRI.

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