A ordem artística

A ordem artística

Autor: Maurice De Wulf (1867-1947)

Retirado do livro “Art and Beauty”, tradução nossa.

A noção de ordem

Alguém quer colocar sua biblioteca em ordem. Ele empilhará livros e revistas desordenados, jornais e pastas, brochuras e manuscritos como um caminhoneiro que carrega sua caçamba? Não seria ordem, mas caos. Ao contrário, ele realizará uma classificação, reunindo, por exemplo, em estantes separadas os romances, os guias de viagem, as obras filosóficas, os tratados científicos, os estudos de arte, os livros de história e sabe-se lá o que mais. Esse exemplo muito simples nos permitirá entender o que é a ordem e o que ela implica.

Em primeiro lugar, podemos ver claramente que a ordem não ocorre sem uma pluralidade de elementos. O simples não é ordenável. [1] Ninguém pensará em colocar sua biblioteca em ordem enquanto tiver apenas um livro. Qualquer pessoa que tenha apenas dois livros e decida organizá-los em ordem faria as pessoas rirem. Dois livros não fazem uma biblioteca, assim como dois dias de sol não fazem um verão. De quantos livros você precisa? Eu não sei, e isso não importa. O que importa é que haja uma pluralidade deles e essa pluralidade de elementos constitui os materiais sobre os quais a ordem se irradiará, o substrato que ela sujeitará ao seu reinado. E que maneira esse reinado, esse esplendor será afirmado? Por uma redução à unidade segundo um princípio escolhido que é chamado de princípio de classificação.

A unidade é o segundo elemento da ordem. [2] Quando organizo minha biblioteca, como em nosso exemplo, dispondo em várias estantes os livros, as brochuras, as revistas, os jornais que se relacionam com vários assuntos, eu os classifico de acordo com seu conteúdo: o princípio adotado é um princípio referente às ideias. Posso escolher outros princípios de unidade, por exemplo, a língua em que as várias obras são escritas. E imediatamente a ordem da minha biblioteca muda de aspecto: obras de direito, ciência, filosofia se misturam para se justaporem, conforme sejam escritas em latim, francês ou inglês. Posso chegar em outros princípios unificadores, como, por exemplo, o formato dos meus livros ou a cor de sua encadernação. Há pessoas que recorrem a este sistema superficial, pois para elas uma biblioteca deve ser agradável aos olhos. Os curadores dos nossos principais repositórios mantêm a classificação numérica, baseada na designação de classe que a obra recebe à entrada, e o princípio de unidade que adotam responde admiravelmente às necessidades das bibliotecas públicas.

Vê-se surgirem imediatamente consequências das quais teremos que fazer numerosas aplicações no estudo da obra de arte. Por um lado, o número de materiais colocados em ordem não influencia a natureza da ordem; o princípio racional, por exemplo, mostrado pelo número inscrito na lombada de um livro, aplica-se tanto a uma modesta biblioteca privada como às imensas coleções públicas em que os livros são reunidos às centenas de milhares. Por outro lado, o elemento especificador da ordem é o princípio da unidade. A ordem muda com ele. Mude o princípio da unidade e a disposição dos materiais muda imediatamente. Além disso, a ordem de um pode tornar-se a desordem de outro. Um advogado ou um professor encontrarão suas escrivaninhas em ordem quando documentos, livros, fichas, pastas estiverem agrupados por temas, conforme o trabalho que exercem; para o mordomo, por outro lado, essa disposição de materiais é um absurdo e todos aqueles que estão acostumados a ter mesas de estudo carregadas sabem que apenas os comandos mais rígidos podem impedir que os criados organizem o conteúdo de acordo com o tamanho dos livros, o formato dos panfletos e o tamanhos dos papéis. Se é apontado ao mordomo que ele desordenou os papéis, ele fica surpreso. Por que? Porque ele não entendeu; ele não percebeu o princípio de ordem que inspirou seu patrão; sua mente não apreendeu a situação do ponto de vista da unidade, que no nosso exemplo seria o conteúdo temático dos documentos. Ele se assemelha em todos os aspectos ao camponês de Dauphiné, insensível à maravilhosa ordem das montanhas em meio às quais ele vive, ou ao visitante inculto que, colocado em frente à Vitória da Samotrácia, na curva da grande escadaria do Louvre, não completa pela imaginação os membros ausentes dessa mulher alada e não percebe a impressão de graça e velocidade, de orgulho e poder que esse mármore deve ter dado à proa do navio.

Todos esses exemplos colocam em relevo a essência do princípio de unidade: “é uma visão mental, um conteúdo de ideias, separado da matéria e – não hesitamos em acrescentar – separado por meio de abstração em um conjunto de materiais ou em uma massa ordenável.” Seguindo a enérgica fórmula de um filósofo medieval, podemos dizer que a unidade é o elemento racional da ordem: ratio ordinis.

O termo “abstração” não deve nos assustar. O elemento de realidade que apreendemos pelo processo de abstração não é necessariamente algo metafísico e suprassensível, como a virtude ou a bondade. Ao contrário, a abstração está enraizada principalmente no domínio da sensibilidade. A disposição de altura em um regimento que, da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda, coloca os soldados segundo uma escala ascendente ou descendente, assenta-se no princípio da unidade reconhecida pelos sentidos: o tamanho do corpo. O mesmo vale para as diversas artes: o arco romano ou ovigal, cujas magníficas repetições produziram as naves das igrejas e catedrais da França, são formas lineares vistas a olho nu, mas percebidas de forma abstrata enquanto princípio de unidade.

Notemos também que quando qualquer ordem é constituída pelo homem, ele escolhe livremente seu princípio de unidade; mas, uma vez escolhido, deve permanecer fiel a ele, sob pena de diminuir a força e o poder da ideia que unifica. Os curadores de nossas principais bibliotecas sabem disso: um livro fora do lugar é quase sempre um livro perdido. A inteligência tem necessidade da unidade, anseia por ela e se deleita nela. Instintivamente, a mente humana classifica e agrupa as coisas em torno de um centro, e isso é tão verdadeiro que, na ausência de uma unidade real, estabelecemos nas coisas uma unidade artificial. Inversamente, a desordem nos choca e nos faz sofrer. Quando é notória, como ocorre em uma obra de arte fracassada, torna-se dolorida à alma.

Multiplicidade de materiais e princípio de unidade: estes são os dois elementos de ordem considerados até agora. Há uma terceira, a variedade, o que significa que “os elementos ordenados devem trazer em si, em graus variados, o caráter comum que a inteligência escolhe como princípio de ordem”. [3] Nem todos os livros de uma biblioteca ordenada cientificamente tratam da mesma ciência, e numa mesma ciência (Direito por exemplo), as obras não têm todas o mesmo valor e a mesma importância.

Variado não significa disparatado. A variedade pressupõe elementos comuns, enquanto o díspar exclui essa propriedade comum e torna impossível qualquer redução à unidade ou qualquer participação, em graus diversos, no princípio da ordem. Há disparidade entre homens e figuras geométricas, entre juízos científicos e girafas. Como você espera que tais entidades sejam colocadas em uma mesma ordem, uma vez que elas não têm algo de semelhante entre si que a mente possa apreender a partir da abstração dos materiais ordenáveis? Por outro lado, podemos ordenar homens com homens, ideias com ideias. Se, por exemplo, dispusermos os soldados de um regimento de acordo com seu tamanho, veremos que seu tamanho é variado; a relação entre a altura de cada um deles e o padrão de medida não é a mesma. Assim ocorre com a ordem em um relógio, em uma locomotiva, onde todos os materiais (aqui são as engrenagens) não têm a mesma importância, mas contribuem, cumprindo funções distintas, para a produção de um mesmo movimento (o movimento dos ponteiros de um relógio, a circulação das rodas sobre um trilho) e esse movimento é o princípio de unidade do relógio ou da locomotiva. O mesmo se dá com a ordem cronológica, a ordem social, a ordem militar: poderíamos estender indefinidamente a lista de exemplos. Podemos, portanto, definir a ordem: “a redução de elementos múltiplos e variados à unidade segundo o mesmo princípio ou uma razão comum”.

Tipos de ordem

Esta noção elementar da ordem permite classificar os diferentes tipos que a noção de ordem compreende. O campo da ordem é tão vasto quanto o do ser. Todo o real, todo o concebido é passível de ser ordenado. Considerando-se os materiais ou o substrato ordenável, pode-se estabelecer múltiplas divisões da ordem. Aqui estão os dois principais:

1) Quando sistematizamos o conhecimento (ideias e juízos), a ordem é lógica ou científica; quando classificamos seres reais ou existentes fora de nós, a ordem é real. É com juízos e raciocínios que construímos as ciências (ordem lógica), assim como é com tijolos e vigas que construímos casas (ordem real).

2) A ordem real é estática ou dinâmica, uma ordem de coordenação ou de subordinação. A ordem mecânica (locomotiva, automóvel, relógio) baseia-se numa função (deslocamento rápido; indicação de tempo); a ordem social repousa nas múltiplas relações de atividade que existem entre os cidadãos; a ordem de um banco ou de uma estação ferroviária depende de objetivos específicos (segurança e rapidez nas operações financeiras, circulação de comboios e passageiros). Exemplos de ordem dinâmica são encontrados onde o princípio dominante é o destino desejado, a atividade a ser realizada, o fim a ser perseguido.

Por outro lado, a ordem estática não suscita nenhuma ideia de fim; uma coisa é realizada ou disposta pela simples reunião de seus elementos. A ordem dos grupos em uma procissão, o arranjo de um grupo de árvores em um bosque e os graus em uma hierarquia honorária, tal como a Croix de Guerre ou a Legião de Honra, são ordens estáticas.

As duas ordens, tanto a estática quanto a dinâmica, podem aparecer no mesmo ser. Um cavalo de corrida e um cavalo de tração, ambos em repouso, apresentam a mesma coordenação dos músculos, a configuração dos membros característica a qualquer cavalo enquanto tal (ordem estática). Mas deixe-os mover-se um pouco e imediatamente o movimento dos músculos e dos membros é direcionado a um fim especial e diferente para cada um, rapidez de movimento em um caso, lento desenho de uma carga pesada no outro (ordem dinâmica).

A natureza, em suas produções, também modela a constituição de uma coisa em direção a seu fim: o criador de gado, embora dobre a natureza ao seu desígnio, ainda deve se curvar à grande lei da finalidade.

Veremos que a ordem artística é uma ordem de coisas e não uma ordem de ideias; e esta ordem real é estática e dinâmica. Para entendê-la, é preciso passar da noção geral de ordem à noção de ordem artística, e perceber o que a segunda acrescenta à primeira.

Ordem artística

Basta que o homem estabeleça qualquer ordem em materiais sensíveis (cores, sons, formas) para que essa ordem reivindique a beleza artística? Não, certamente não. Uma biblioteca, uma vitrine de loja, uma mercearia bem cuidada, um livro de contabilidade, a caixa de ferramentas de um mecânico podem ser muito bem organizados sem assumir o menor prestígio artístico. Quando então, em que condições, uma obra ordenada se cobre com o manto real da beleza? Responderemos: “Quando for capaz de produzir uma forte impressão no sujeito que com ela entrar em contato; quando falar alto e claramente aos seus sentidos, à sua imaginação, à sua inteligência; quando todos os seus elementos apelarem e estimularem aquele prazer de contemplação que constitui o fim primário artístico.” Em suma, a ordem artística é uma ordem poderosamente expressa, tornada deslumbrante. Uma obra de arte é um todo ordenado, o que significa que contém uma multiplicidade de elementos, que é feita de variedade, que tem unidade. Mas a ordem expressa-se poderosamente, o que significa que o artista está constantemente preocupado em adaptar a ordem criada ao trabalho de viva contemplação que deve suscitar. Quanto mais perfeita for essa adaptação, mais bela será a obra. Todos os esforços artísticos visam facilitar o trabalho de contemplação. A ordem artística não é, portanto, uma coisa absoluta, pois deve ser modelada pelas capacidades do sujeito.

Estas são fórmulas, dir-se-á. Sim, mas fórmulas revigorantes, porque as exigências artísticas, os processos da arte são explicados por essa lei de correlação. Examinemos alguns desses processos, agrupando-os em torno dos três elementos constitutivos da ordem artística.

Multiplicidade artística

Falemos primeiramente da multiplicidade de elementos que entram em uma obra de arte, daquilo que Aristóteles chama de desejada grandeza ou justa medida, [4] integritas, magnitudo. É fácil ver que essa multiplicidade é condicionada pela impressão que é chamada a produzir no espectador ou no ouvinte e que, consequentemente, pode ser muito pobre ou muito rica.

Se for pobre demais em elementos, a obra será mesquinha, banal, incapaz de interessar: um ponto preto em um quadro branco não responde às exigências de execução artística; uma reflexão à la Palisse não possui valor literário. Observemos, porém, que aquilo que parece insignificante em si mesmo pode, nas mãos de um artista, tornar-se suscetível de beleza. Uma procissão saindo da igreja, um raio de sol em uma cabana, uma vigília sob a lâmpada e mil outros assuntos fornecem temas de relações complexas ao pintor, ao desenhista ou ao aquarelista, que sabem como colocá-los em apresentação artística. [5]

Se, ao contrário, a obra de arte acumula tantas coisas que o sujeito não consegue abarcá-las com uma visão de conjunto, o prazer da contemplação artística é envenenado em sua origem e a obra peca por excesso, contra a lei da correlação que mencionamos anteriormente. A complexidade então se torna um obstáculo. Essa é a impressão deixada no Museu de Versalhes pelas enormes pinturas de batalha que revestem as paredes das longas galerias. São, em sua maioria, verdadeiros panoramas estratégicos, onde episódios incoerentes se justapõem, sem que o olhar e a mente consigam coordená-los. Talvez haja uma ordem estratégica nesses panoramas (ordem ontológica), mas o valor artístico da obra fica comprometido pela dificuldade ou impossibilidade que se experimenta em percebê-la na sua totalidade (ordem artística). Essa é também a impressão produzida por certas composições musicais modernas que abusam dos recursos orquestrais.

Mas há uma série de procedimentos artísticos cuja análise mostrará que a multiplicidade de elementos constitutivos de uma obra de arte não deve ser encarada de forma absoluta, como ocorre na beleza natural, mas de forma relativa, considerando-se a capacidade do sujeito chamado a contemplá-las. Um missionário conta que um africano, a quem um dia apresentou a fotografia de um cavaleiro tirada de perfil, virou a imagem para descobrir onde estava a segunda perna, colocada do outro lado do cavalo. Um pequeno fato que revela a diferença entre um todo naturalmente ordenado e um todo artisticamente ordenado. Na natureza, um ser só é ordenado e belo se realmente possuir as partes integrais que sua perfeição exige, e, assim, um homem imperfeito em um de seus órgãos, como o maneta, ou em uma de suas funções, como o coxo, é desprovido de beleza natural na medida em que está mutilado. “Um homem pequeno, por mais bem proporcionado que seja em sua pequenez, nunca será belo porque lhe falta o tamanho desejado; ele será no máximo gentil, gracioso”. [6] Na ordem artística é diferente: basta que a ordem apareça e dê a impressão de estar completa. A presença real de todos os elementos não é necessária. Essa completude é tão pouco necessária que o artista pode se dedicar deliberadamente a mutilações da ordem exposta em sua obra, pois ele bem sabe que para gerar interesse no espectador, ou ouvinte, deve-se associá-lo à atividade criadora. Ele deve ser forçado a aperfeiçoar por meio de seus sentidos, de sua imaginação e de sua inteligência, as lacunas intencionalmente deixadas na obra e, para tanto, certos elementos apenas sugeridos são suficientes para atrair os demais em seu rastro.

Os processos de mutilação, previsão e sugestão artísticas são praticados por todas as artes. Em romances, tragédias, comédias, dramas, em uma simples descrição literária, seu uso é imprescindível. Seria insuportável um romance que mostrasse detalhadamente, e sem economizar em algum detalhe, as menores ações e palavras dos personagens. De um capítulo a outro, o escritor usa insinuações, ignora fatos intermediários, mas a obra contém os elementos necessários para que a imaginação do leitor reconstrua toda a trama. Racine nos faz compreender a importância de um evento na ação ao mostrar seu efeito sobre um personagem do drama. Isso tem sido chamado como uma espécie de duplicação do efeito. A duplicação de efeitos pode até mesmo existir à segunda potência. A palavra é de M. Lechalas, e mostra que o procedimento é aplicado com muitos refinamentos, aliás, num drama de Maeterlinck. [7] Quando Ernest Hello exige que o estilo seja expansivo e contido, que tenha modéstia e discrição, ele está visando essa arte de abreviar, a qual não pode ser ensinada, mas na qual reconhecemos os mestres. O grande poeta, o grande romancista, o grande literato é aquele que sabe se calar na hora adequada e que sabe transformar seus leitores em poetas, romancistas e literatos. Não é diferente com o grande orador, cuja insinuação não exerce menos influência sobre a audiência do que o seu próprio discurso. M. Souriau mostra como na pintura a sugestão imaginativa pode se somar à representação. “Aqui o desenhista traça o braço de uma mulher; como é que indica que este braço não é plano mas redondo, isto é, que possui relevo? Se houvesse apenas uma pulseira no pulso! Eu desenho esta pulseira e imediatamente todo o braço parece arredondado. A forma da pulseira no pulso indica claramente, pela perspectiva, a forma arredondada do braço; a sugestão que operou em um ponto faz com que seja estendida a toda a figura.” [8]

O mesmo ocorre na música. Uma vez que a melodia é colocada – e como a palavra ‘tema’, que vem de ‘dispor’, tende fielmente a essa nuance! – muitas vezes o músico se contenta em evocá-la mais tarde na composição por um fragmento, por um acorde suspenso, por algumas notas que servem de estímulo; o resto se completa no ouvido do ouvinte atento que se torna, assim, associado ao artista. Tal é também o papel do ritmo e da medida: “Ritmo e medida”, observa M. Bergson, “ao permitir-nos prever ainda melhor os movimentos do artista, fazem-nos crer que somos nós os mestres … a regularidade do ritmo estabelece entre ele e nós uma espécie de comunicação, e os retornos periódicos do compasso são como tantos fios invisíveis por meio dos quais colocamos em movimento este fantoche imaginário.” [9] Em suma, a multiplicidade de elementos introduzidos pelo artista em uma obra de arte está em função de um efeito a ser produzido, de um interesse a ser despertado no ser humano chamado a contemplá-la.

Variedade

Pelas mesmas razões, a variedade artística deve ser impressionante, claramente expressa. A monotonia embota a atenção da mente e dos sentidos. Ora, sem atenção não há percepção da arte, e sem percepção não há prazer estético. Nas mãos do artista o procedimento técnico confere às diversas partes da obra um relevo distinto e fixa sua convergência com a ideia central ou com o princípio de unidade. Em Descida da Cruz, de Rubens, os personagens contribuem de várias maneiras para a entrega de Cristo; nos Lutadores florentinos cada integrante desses corpos de atletas participa, à sua maneira, da luta. Os atores secundários do drama dão relevo ao herói principal e os fatos incidentais ao quadro fundamental. É em razão da variedade que o pintor preenche seus fundos, multiplica suas cores, dispõe suas sombras e luzes, abre espaço para os mínimos detalhes. Pequemos emprestado outro exemplo da música, a arte tão profundamente humana, e do procedimento que J. S. Bach impõe à Fuga clássica. Esta é composta por duas melodias fundamentais, que o artista desenvolve de mil maneiras, o tema e o contra-tema. Mas entre os dois há um interlúdio, um descanso, que a terminologia técnica chama de divertimento. Divertimento, sim, isso mesmo, porque seu papel é criar uma diversão, desviar a atenção momentaneamente, refrescá-la, para depois trazê-la de volta com mais vigor à melodia original. Os trinados, os arpejos, os acordes longos, as dissonâncias, os desenhos fantasiosos e muitas outras peculiaridades do concerto ou da sonata não têm outra função estética senão proporcionar uma trégua, descansar o ouvinte e prepará-lo para novas ideias musicais.

De todos os processos geradores de variedade artística, nenhum é mais poderoso do que o contraste ou o desvio levado à oposição entre elementos: contraste de personagens, situações, sentimentos na literatura; contraste de atitudes esculturais; contraste de acordes, piano e forte, timbres instrumentais; contraste de sombras e luzes, em todos os lugares o objetivo perseguido é o mesmo: tornar mais deslumbrante a ideia que o artista deseja sublinhar. É ao contraste que Rembrandt deve seus efeitos mais poderosos. Às vezes, como na Ronda Noturna, o mestre inunda com um feixe de luz as partes expressivas dos rostos que são os únicos que se destacam no fundo negro da pintura. Do mais longe que podemos ver, ao fundo de uma das longas galerias do museu de Amsterdã, o olhar se prende a esse expressivo grupo de noctâmbulos. Às vezes, por um processo inverso, de que gosta em seus retratos, o facho de luz ilumina apenas um lado do rosto e, sob o chapéu de feltro com abas largas, Rembrandt esconde o desenho dos olhos, mas é para obrigar-nos a procurá-los. Ao fixarmos nossa atenção, encontramos o olhar e a sugestão faz o resto. O olhar não é o espelho da alma? Já Plotino recomendava ao pintor concentrar nos olhos todo o esforço de sua técnica.

O que há de verdade na teoria do “feio superado” é explicado pela própria lei do valor. A feiura pode servir de contraste e, como tal, deixa de ser feio. Santo Agostinho atribui o mesmo papel ao mal cósmico: o mal contrasta e destaca o bem; graças a ele a economia do universo se torna mais opulenta, luculentior. O mal, o feio, a sombra não são belos em si mesmos, mas na medida em que estimulam as faculdades perceptivas e põem em relevo os elementos fundamentais da obra.

Unidade

À unidade, qualidade mestra de todas as ordens e, portanto, também da ordem artística, ligam-se outros fenômenos não menos interessantes.

Os elementos variados e múltiplos que entram na composição de uma tela, de uma estátua, de uma catedral, de um concerto, de um poema ou de um romance, não passariam de caos se um princípio de unidade não viesse informá-los e torná-los coerentes. É somente com a condição de se unirem que adquirem valor e sentido. Trazer à tona com intensidade a ideia que seja o princípio unificador da obra, impressionando, assim, o ouvinte e o espectador, tal é o segredo dos mestres: quanto mais fortemente a ideia for representada, tanto mais bela será a obra. O princípio de unidade nada mais é do que a ideia ou o sistema de ideias escolhido pelo artista e que ele quis exprimir, tornar marcante por todos os meios de que dispõe o seu cinzel ou a sua paleta, o seu arranjo de sons e palavras. Sully Prudhomme observa com razão que cada arte tem suas próprias ideias. Portanto, não há ideias apenas na literatura, mas há ideias arquitetônicas, por exemplo, as linhas ogivais; ideias musicais, como as melodias; ideias escultóricas, como as atitudes de um corpo humano; e ideias pictóricas envoltas em desenho e cor. Todas as áreas da realidade sensível estão abertas ao artista nesta escolha do princípio de unidade. Para retomar uma divisão mencionada anteriormente, esse princípio será de ordem estática ou dinâmica. Estático ou de disposição, se a obra evidencia o que uma coisa é e deve ser. De ordem dinâmica se apresenta uma função, uma atividade, ou mesmo uma utilidade que o artista torna significativa.

Para encontrar exemplos disso, basta abrir qualquer página do grande livro da história da arte. Um grande grupo de escultores jônicos se dedicou a traduzir o corpo humano em uma espécie de impassibilidade. O princípio de unidade ao qual se ligaram é o da regularidade plástica; aí irrompe pelos meios mais diversos. Todos conhecem aqueles bustos de jovens e deusas, Apolos e Vênus, cujos autores intencionalmente retificaram as linhas do nariz, buscaram a simetria absoluta dos membros. Nenhum sentimento, suave ou violento, toca essas bocas de mármore. Essa arte, diz Winckelmann, é como a água pura, que é tanto melhor quanto não tem cheiro nem gosto. Mas há outros grupos de estátuas antigas. Existe, por exemplo, o Gaulês moribundo do Capitólio, onde a eloquência do mármore expressa magnificamente o colapso de um corpo flexível e vigoroso, ou ainda os Lutadores florentinos, onde o triunfo da força física aparece em plena luz. Dois corpos de atletas, com músculos inchados, traços salientes. Um deles, o vencedor, levanta o braço em atitude de quem vai desferir um golpe. Aqui o princípio da unidade não é mais, como antes, de ordem estática, mas de ordem dinâmica. O artista escolheu como ideia dominante uma atividade corporal, a luta; ou ainda, como no Laocoonte e na Pietà de Michelangelo, a emoção interna que o movimento externo traduz. À medida em que a mente apreende os elementos da obra e os reconduz a essa ideia cujo império o artista assegurou; gradualmente a rede torna-se mais complicada, multiplica-se a variedade de relações entre as partes; a riqueza da ordem se espalha e a alma se deixa impregnar.

A unidade, afirmando-se em múltiplas e variadas proporções, é também o fundamento da beleza das composições do desenho, e o artista tem uma escolha ilimitada em temas de ordem estática (flores, arabescos) ou dinâmica (um episódio vivo). Quando o desenho é colorido, a ordem representada adquire um novo relevo. A disposição simétrica das figuras em torno de um centro (por exemplo, A lição de anatomia de Rembrandt, Descida da Cruz de Rubens), ou na forma de um quadrado (Sagrada família de Correggio), são formas de alcançar a unidade; a coloração dos detalhes e do todo é outra. Na Descida da Cruz de Rubens, o corpo lívido de Cristo, isolado num sudário branco, é o tema central ao qual dão relevo todas as figuras, desde o trabalhador debruçado sobre a Cruz até à Virgem que chora. [10]

Se das artes plásticas passamos à literatura, o campo da ordem se alarga ainda mais, pois o escritor não tem apenas o poder de descrever seres em repouso (ordem de coordenação), ou de representar atitudes e ações exteriores, mas tem o privilégio de nos introduzir no domínio das atividades morais e de ali criar situações que a arte plástica não consegue retratar. Nesse sentido, o caráter do herói é o princípio de unidade nas tragédias de Racine. “Todos conhecem o tema sublime da tragédia de Horácio: “ele deve morrer”. Pergunto a alguém que não conhece a peça de Corneille, e que não faz ideia da resposta do velho Horácio, o que pensa deste verso: “ele deve morrer”. É óbvio que a pessoa que estou questionando, sem saber o que é “ele deve morrer”, vai me responder que não lhe parece bonito ou feio. Mas, se eu lhe disser que é a resposta de um homem consultado sobre o que outro deve fazer em uma luta, ele começa a ver na resposta uma espécie de coragem que não lhe permite acreditar que é sempre melhor viver do que morrer, e o “ele deve morrer” começa a interessá-lo. Se acrescento que se trata neste combate da honra da pátria; que o combatente é filho do interrogado; que é o único que lhe resta; que o jovem tinha que lidar com três inimigos que já haviam tirado a vida de dois de seus irmãos; que o velho está falando com sua filha; que ele é romano; então a resposta “ele deve morrer”, que não era nem bonita nem feia, torna-se mais bonita à medida que desenvolvo sua relação com as circunstâncias, e acaba sendo sublime. [11]

Tanto a ordem estática como a dinâmica são encontradas na música e na arquitetura. A tonalidade é como uma tela na qual a melodia é bordada; impõe um sistema de acordes que ajuda o ouvinte a se encontrar; e o ritmo binário ou ternário regula o desenvolvimento da melodia assim como a pulsação arterial regula a circulação do sangue. São fatores de unidade incomparáveis ​​cujos recursos os clássicos utilizaram e que se prestam a combinações indefinidamente novas.

A obra arquitetônica (catedral, banco, estação, residência urbana, casa de campo) toma primeiramente sua unidade da sua função e de sua finalidade, as quais, diremos em uma palestra futura, é toda a razão de ser do edifício; mas esta finalidade é sublinhada por um sistema de formas lineares que a tornam imediatamente reconhecível. Basílicas e catedrais não são apenas um conjunto aleatório de paredes e abóbadas, colunas e pilares: os princípios orientam o olhar e capturam a unidade do edifício. Na igreja bizantina o princípio é a cúpula; por todos os lados, as linhas circulares conduzem o olhar à sua radiante majestade; e soluções elegantes (como pendículos e tambores) garantem a transição de formas quadradas ou octogonais para formas arredondadas. Na catedral gótica o princípio fundamental da unidade é o cruzamento das nervuras que rege as grandes e pequenas abóbadas, permitindo a esbelteza das paredes e formando todo o sistema de contrafortes e arcobotantes. O estilo ogival é uma coordenação lógica; o edifício românico é outra, assim como o templo grego ou uma mesquita. Em todos os estilos clássicos, uma unidade de coordenação linear domina a obra arquitetônica e, por sua vez, repousa sobre o propósito final do edifício.

Assim, a unidade é a força de coesão que tudo coordena em uma obra, seja em um breve poema lírico ou em um tragédia de Corneille, em uma pintura de cena de Van Ostade ou em um tríptico de Van Eyck; na Saint-Chapelle ou na Catedral de Amiens.

Por outro lado, se um elemento ou grupo de elementos falham em se encaixar na ideia unitária, temos, então, o incômodo estético ou a feiura. É por isso que no drama ou no romance um personagem incoerente é feio. É por isso que o monumento gótico esculpido na Mesquita de Córdoba é um absurdo artístico. Se no grupo de Lutadores florentinos, de que falamos anteriormente, o braço esquerdo do vencedor tivesse permanecido pendurado ao longo do corpo, em vez de enrijecido no esforço muscular, a obra do escultor grego teria sido desprovida de lógica e beleza. O artista escolhe com total independência a unidade que pretende imprimir à sua obra e os meios para a concretizar; mas uma vez feita a escolha, ele deve permanecer fiel a ela. Isso explica por que os mesmos dados podem inspirar vários artistas a criar as mais diversas obras [12] e porque uma das figuras suntuosas da Última Ceia de Veronese estaria fora de lugar em uma pintura semelhante de Leonardo da Vinci. Um grupo de crianças brinca no mercado de Blida, no Oriente. O pintor que se inspira nesta cena, observa M. Fromentin, pode colocar-se a partir de diferentes pontos de vista: “São crianças a brincar ao sol? Ou é um lugar ao sol onde as crianças brincam?” A pergunta não é inútil. [13]

Essas reflexões nos levam a considerar uma série de procedimentos aos quais a obra de arte recorre para acentuar sua unidade e melhor se impor. Primeiramente é o tema. O fato pitoresco ou histórico fixa poderosamente a atenção no conteúdo da obra. O dado literário ou plástico, o tema musical condutor, a cor local com que os pintores e escritores tingem as suas obras, devem o seu valor artístico ao poder que possuem de aumentar a ligação e a coerência entre os elementos.

Uma obra de arte expressa a sua unidade, não só coordenando-se a partir de dentro, mas defendendo a sua individualidade contra o que a rodeia. Ela triunfa por seu isolamento; pois, estando à parte, retém para si a atenção exclusiva do espectador. A moldura em que se coloca uma tela, com o seu dourado opaco ou brilhante, as suas molduras planas ou arredondadas, não é uma decoração qualquer, um passe-partout destinado a receber telas intercambiáveis. O enquadramento da pintura é sobretudo a extensão da obra e o guardião da sua individualidade. É ele quem, no painel da sala, isola a tela de outros objetos cuja proximidade poderia lhe prejudicar o efeito. Além disso, quando se trata de exposições de arte, a questão mais proeminente refere-se ao lugar em que a obra será colocada. Da mesma forma, nada é mais difícil do que a classificação, do ponto de vista artístico, das muitas obras de arte reunidas no mesmo museu. O lugar de honra é sempre um lugar fora da hierarquia: como aquele que pertence à Vênus de Milo no centro do salão do Louvre, onde se destacam tão bem as linhas brancas do corpo da deusa em contraste com o vermelho alaranjado sombrio do veludo.

O esplendor da beleza

Concluamos: a ordem artística deve sua beleza ao brilho com que se adorna e graças ao qual provoca o gozo contemplativo do sujeito a quem afeta. É adequada às capacidades do homem. Nos seus comentários ao Tratado dos Nomes Divinos do Pseudo-Dionísio Areopagita, cujos entusiasmos estéticos têm um sabor alexandrino, os filósofos da Idade Média insistem numa qualidade do belo que se aplica muito bem, ao que me parece, às exigências da ordem artística e que eles chamam de resplendor, claritas pulchri. A obra de arte faz brilhar uma ideia em materiais sensíveis: pulchrum congregat omnia… secundum quod forma resplendet super partes materiae, sic est pulchrum habens rationem congregandi. [14] O texto é de um opúsculo de S. Alberto Magno escrito no século XIII. Obviamente São Francisco de Sales se inspira nesta doutrina quando escreve no início do Tratado do Amor de Deus: “O belo, sendo belo porque o seu conhecimento nos deleita, além da união e da distinção, da integridade, da ordem e da conveniência de suas partes, deve ter muito esplendor e luz, para que seja conhecível e visível; as vozes para serem belas devem ser claras e límpidas, os discursos inteligíveis, as cores brilhantes e resplandecentes.” [15]

Sim, a obra de arte deve brilhar: pela multiplicidade dos seus elementos, pela variedade das relações que os unem e pelo princípio de unidade que os congrega. Somente nesta condição, a obra fala às almas e as preenche com seu esplendor.

Não é diferente com a beleza da natureza.


Notas:

[1] “Ordo in ratione sua includit tria, scilicet: … distinctionem, quia non est ordo aliquorum nisi distinctorum.” S. Tomás, Comm. in Lib. I Sentent. dist. XX, q. 1, a. 3.

[2] “Includit etiam tertio rationem ordinis, ex qua etiam ordo in speciem contrahitur. Unde unus est ordo secundum locum, alius secundum dignitatem, alius secundum originem et sic de aliis.” Ibid.

[3] “Rationem prioris et posterioris; unde secundum omnes illos modos potest dici esse ordo aliquorum, secundum quos aliquis altero prius dicitur et secundum locum et secundum tempus et secundum omnia huiusmodi.” Ibid.

[4] Poética, VII, 4.

[5] Ocorre o mesmo com a beleza natural: o movimento de um nadador que mergulha na água é bem ordenado se nele houver uma equação entre o esforço despendido e o fim alcançado (ordem ontológica): e esta ordem nada tem de estética. Se, no entanto, soubermos que um pensamento de coragem heroica o inspira, que se trata de um resgate perigoso, o ato de se jogar naquela água, banal em si mesmo, pode assumir, em tais circunstâncias, uma beleza trágica.

[6] “Dicit [Philosophus] quod pulchritudo non est nisi in magno corpore. Unde parvi homines possunt dici commensurati et formosi, sed non pulchri.” S. Tomás, op. cit., dist. XXXI, q. 2, a. 1.

[7] Lechalas, Etudes esthétiques, p. 135.

[8] M. Souriau. La suggestion dans l’art, p. 95. Cf. Lechalas. Etudes esthétiques, Paris, 1902, cap. 4. A sugestão de que falamos é individual; ela ilumina a obra de arte do seu interior, pois contribui para torná-la agradável. Será preciso dizer que nada tem em comum com a sugestão ou comando coletivos, fenômenos da ordem social, mas não estéticos, como a propaganda, o estilo, a fé de um guia, como o asterisco de um Baedeker. Esses entusiasmos convencionais não entram na gama das emoções artísticas.

[9] Données immédiates de la conscience, p. 9.

[10] Ver também o excelente comentário de E. Fromentin acerca da obra-prima dos irmãos Van Eyck, A Adoração do Cordeiro. Op. cit., pp. 124s.

[11] Diderot, Oeuvres philos. II, p. 141 (ed. Belen, 1818).

[12] Ver abaixo, cap. 6.

[13] “Une année dans le Sahel”, Blidah, Revue des deux Mondes, Setembro, 1858.

[14] De pulchro (ed. Uccelli, 1869), p. 29.

[15] Traité de l’amour de Dieu, l. I, cap. 1.

Prof. Thiago Plaça Teixeira

O Professor Thiago Plaça Teixeira é Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Paraná, Bacharel em Piano pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná, Mestre e Doutor em Música pela Universidade Federal do Paraná. Foi premiado em concursos de piano e atuou com diversos instrumentistas, cantores e grupos corais em concertos, óperas, festivais e séries de música de câmara. Trabalhou em instituições de ensino superior no Paraná ministrando disciplinas teóricas e práticas. Como pesquisador, direciona seus estudos à música sacra católica, área em que também tem experiência prática atuando como organista.

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