O “Bel Canto”

O “Bel Canto”

No presente artigo tratarei de um importante conceito na História da Música: o “Bel Canto”. Em um sentido amplo costuma designar uma qualidade artística, mais especificamente a beleza sonora e o virtuosismo técnico dos cantores formados na tradição vocal italiana desenvolvida nos séculos XVIII e XIX. Historicamente, o termo designa também alguns períodos específicos da Ópera Italiana, particularmente o repertório produzido por compositores como Rossini, Bellini e Donizetti. Analisarei aqui o termo em si e seu desenvolvimento histórico.


Bel Canto Italiano – Vozes femininas. Soprano Maria Callas (Ópera “La Sonnambula”, Bellini), Soprano Anna Moffo (Ópera “Lucia di Lammermoor”, Donizetti) e Mezzo-soprano Frederica von Stade (Ópera “La Cenerentola”, Rossini).


Bel Canto Italiano – Vozes masculinas. Tenor Beniamino Gigli (Ópera “La Sonnambula”, Bellini), Tenor Rockwell Blake (Ópera “L’Italiana in Algeri”, Rossini), Baixo Cesare Siepi (Ópera “La Sonnambula”, Bellini) e Tenor Jerry Hadley (Ópera “L’elisir d’amore”, Donizetti).

1. O NOME

O termo italiano bel canto significa “canto belo”. Distingue-se nele, portanto, um objeto – o canto – e uma qualificação sua – a beleza.

Canto

Por “canto” entende-se evidentemente a produção de sons musicais, com altura e duração precisas, por meio da voz humana. Diferentemente da música instrumental, em que o agente principal, o instrumentista, serve-se de um objeto exterior a si para produzir sons musicais (piano, flauta, trompete etc.), no caso do canto é o próprio corpo humano que atua como causa instrumental. De fato, o canto depende do uso (1) dos pulmões (fonte de ar), do diafragma (a modo de “fole”); (2) das pregas vocais na laringe (vibrando com a passagem do ar); (3) do espaço interno da boca e das cavidades da cabeça (função de amplificação sonora); e (4) de língua, dentes e lábios (função de articulação das consoantes e vogais). A técnica vocal é o que conferirá plena coordenação entre esses diferentes mecanismos.

Belo

Belo subjetivamente se diz aquilo cuja percepção deleita. Daí S. Tomás dar para o “belo” a definição extrínseca (descreve o efeito de algo): “id cuius apprehensio placet” (aquilo cuja apreensão agrada). Belo objetivamente se diz aquilo que tem determinados dotes que tornam a coisa bela e que são a razão do deleite que se sente em sua contemplação. E tais dotes, segundo S. Tomás, são três: (1) “Integritas sive perfectio” (integridade ou perfeição), pois aquilo que é incompleto ou mesquinho é torpe e disforme; (2) “Debita proportio sive consonantia” (devida proporção ou harmonia), pois o desordenado não deleita, mas desagrada; e (3) “Claritas” (esplendor), para que a integridade e a proporção do objeto se ofereçam claras à alma e deste conhecimento se siga o deleite estético. Daí S. Tomás dar para o “belo” a definição intrínseca (descreve as propriedades inerentes de algo): é belo aquilo que possui perfeição, harmonia e clareza.

Pode-se dar ao “belo”, então, a seguinte definição geral: é a perfeição do ente que resplandece pela ordem e deleita pela apreensão. Mais sucintamente, alguns o definem como o “esplendor da ordem” ou a “perfeição em realce”. [1]

O “Canto belo”

A partir da dupla definição de “canto” e de “beleza”, podemos propor uma possível definição analítica de “bel canto”. Tal definição deve, pois, integrar as três condições objetivas e o efeito subjetivo do “belo” aplicados particularmente ao “canto”.

a) Integridade

Em primeiro lugar, é necessário, portanto, que o canto seja íntegro, o que implica que os diferentes mecanismos fisiológicos sejam utilizados de forma perfeita. Ora, o conceito de perfeição envolve que algo tenha realizado completamente as potencialidades próprias da sua natureza. Portanto, diz-se que há perfeição no canto quando os quatro mecanismos (respiração, emissão, amplificação e articulação) são plenamente realizados, isto é, são executados de forma íntegra, sem deficiências e com pleno desenvolvimento das potencialidades naturais.

b) Proporção

Em segundo lugar, é necessário que o canto seja harmonioso ou proporcional, o que implica duas coisas: (1) uma ordem de coordenação entre os diferentes mecanismos inerentes à produção de som vocal; e (2) uma proporção conveniente entre as sequências melódicas que são produzidas vocalmente. O primeiro aspecto está já indiretamente incluso na noção de perfeição. O segundo, por sua vez, exige por parte do cantor um constante manejo técnico que lhe permita a emissão de frases musicais nas quais haja um acordo na proporção das partes entre si, e delas com o todo. Isto se realiza por um controle dos diferentes elementos musicais (altura, duração, intensidade e timbre) do qual resultam linhas melódicas unidas em uma forma comum que lhes define o conjunto.

c) Esplendor

Em terceiro e último lugar, é necessário que o canto seja claro ou brilhante. Esse atributo do “belo” designa o fundamento objetivo de nossas relações com ele, sendo, em outras palavras, o que prende o olhar e o retém. Em sentido estrito, pode-se designar como clareza no canto aquela capacidade de se produzirem vocalmente sons de timbre brilhante, de altura e duração perfeitamente identificáveis e de clara dicção. Em sentido amplo, porém, o brilho engloba as qualidades que têm o poder de captar e reter a atenção, ou seja, trata-se daquelas qualidades sensíveis que agem sobre a afetividade humana. No canto são particularmente manifestas pela capacidade em se expressar determinados sentimentos por meio de minúcias da execução musical (inflexões no tempo, efeitos vocais etc.). [2]

Em suma, pode-se dizer, a partir de tais considerações analíticas e juntamente com o Prof.º Herbert-Caesari (1884-1969), que o bel canto (“belo canto”) significa “produzir som vocal tão próximo da perfeição em forma e cor como seja individualmente possível em uma suave e fluída linha ‘legato’. Em outras palavras, é o som vocal refinado.” [3]

2. OS SIGNIFICADOS

No item anterior consideramos analiticamente o termo bel canto. Agora trataremos dele quanto aos diferentes significados que teve na História da Música.

O termo bel canto foi utilizado em diversos sentidos e só adquiriu um significado mais específico por volta do final do século XIX. Em sentido lato, bel canto se refere ao estilo vocal italiano dos séculos XVIII e XIX, ou seja, designa aquele conjunto de qualidades técnicas tais como a perfeita produção do legato ao longo de todo o registro vocal, o manejo perfeito da respiração, o brilho nas notas agudas, além do domínio de elementos virtuosísticos (ex: agilidade na coloratura e no trilo). Em sentido estrito, costuma designar especificamente a ópera italiana da época de Rossini, Bellini e Donizetti. De qualquer forma, tanto no sentido lato como no estrito, ao se falar de bel canto, imediatamente se estabelece uma oposição entre a técnica vocal tradicional italiana focada na beleza musical do som vocal, e um outro estilo vocal que se desenvolveu associado particularmente à ópera alemã, sobretudo às obras de Wagner. Esse outro estilo caracterizava-se por um som mais pesado, enérgico e mais ligado à expressão da fala. É o tipo de voz que foi mais empregado na fase final de Verdi, em Wagner e no Verismo italiano em geral. [4]

Maneira de cantar que enfatiza a beleza do som, com um som uniforme ao longo de toda a tessitura da voz; refinado fraseado legato em dependência da maestria no controle respiratório; agilidade em passagens floridas; e uma aparente facilidade para se alcançar notas agudas. Esse modo de cantar é diferenciável daquele outro mais declamatório, estilo em que um som vocal mais pesado é projetado com maior força dramática. O termo é também usado, por alguns musicólogos, para caracterizar o estilo mais lírico dos compositores de música vocal em Veneza e Roma nos meados do século XVII, em contraste com o estilo mais declamatório dos mais antigos compositores de Florença. O período entre meados do século XVII até o início do século XIX é considerada como a era de ouro do bel canto. Este período coincide com o florescimento dos cantores castrati na ópera italiana. Durante esse período, o canto belo significa não somente boa emissão sonora e flexibilidade da voz, mas também a habilidade do cantor em incorporar ornamentos elegantes e artísticos (geralmente preparados por outros) que serviam tanto para destacar as peculiaridades das vozes como também para realçar a expressividade da peça. O temo bel canto passou a ser ativamente utilizado por volta da metade do século XIX, somente quando esse modo de cantar passou a ser atacado devido às mudanças no estilo musical e quando se considerou que estava declinando ou desaparecendo. A imprecisão com que o termo é utilizado atualmente deve-se, em parte, ao fato de que os cantores que agora estão associados com o bel canto cantam a música à qual o termo está associado somente como uma parcela do seu repertório completo. [5]

Durante o século XIX a técnica do bel canto continuou sendo ensinada por grandes mestres, como Manuel Patricio Rodríguez García (1805-1906) e Mathilde Marchesi (1821-1913), mas aos poucos foi havendo um anacronismo entre a técnica antiga e os novos gostos musicais dos compositores e do público. Em meados do século XX, com cantores como Maria Callas (1923-1977), retomou-se o antigo repertório belcantista italiano.

3. SÍNTESE HISTÓRICA

O conceito de bel canto é, portanto, estritamente ligado ao desenvolvimento do canto na Itália, o que, por sua vez, representa uma tradição artística de vários séculos. Apresento aqui uma breve síntese desse desenvolvimento.

Origens

Por volta do ano 590, o Papa S. Gregório Magno estabelece em Roma a Schola Cantorum, a primeira escola de canto, ainda que restrita exclusivamente ao âmbito da música sacra. Durante os aproximadamente 1000 anos seguintes foi se construindo e desenvolvendo uma tradição escolástica em torno da atividade musical. A partir de 1600 há uma sucessão de gerações que, por meio de esforços minuciosos, estabelecem uma tradição vocal, uma técnica de canto que vai sendo progressivamente desenvolvida até chegar praticamente à perfeição em meados do século XVIII. [6]

Idade Média

No século XIV na Itália cantavam-se baladas, músicas de caça e madrigais. E essa música italiana medieval já se caracterizava pelas suaves e agradáveis melodias, embriões das grandes melodias que chegariam até nossos dias.

Os cantores de rua italianos iam de um lugar a outro entoando suas canções populares … Do sul, particularmente de Nápoles, vieram a canzone, a canzonetta e a villanella, todas mais ou menos de cunho popular, e alcançaram os círculos musicais de cidades do norte, tais como Modena, Ferrara, Bologna, Ravenna, Mantova, Padova, Verona e Veneza. O aspecto essencial dessas composições espontâneas … era a melodia, que se tornou a expressão dos sentimentos musicais dos italianos. […] Uma bela melodia tem a sensualidade própria que é acentuada e tornada mais encantadora pela qualidade de uma voz especialmente boa, pelo modo como é produzida e pela mente por detrás dela. Certos efeitos vocais que são parte intrínseca de uma verdadeira boa melodia exercem um impacto poderoso sobre os sentidos. [7]

Renascença e Barroco

Os italianos sentiam de forma quase espontânea que uma linha melódica sustentada por harmonias simples seria bastante expressiva e tenderia a criar algum estado emocional no público. Por volta do final do século XVI a concepção de que a linha melódica e o canto solo poderiam dar vida à palavra será defendida por um grupo de teóricos de Florença. Trata-se da famosa Camerata, que contava com literatos e músicos reunidos em torno do Conde Giovanni Bardi e tendo Vincenzo Galilei como seu teórico preeminente. É nesse contexto que nascerá a Ópera enquanto gênero musical.

Das primeiras óperas compostas merece especial menção a L’Orfeo, de Monteverdi, estreada em 1607 no palácio do Duque de Mântua. Nessa época, os cantores provavelmente cantavam de modo natural, não havendo ainda uma “Escola de canto” estabelecida. Já nos anos 1600’s as óperas se espalham de Florença e Mântua para Padova, Milão, Bologna, Veneza, Roma e outras localidades. Também se iniciam os acréscimos de coloraturas, trilos, arpejos e improvisações às linhas melódicas, denotando o crescente interesse estético pela exuberância vocal. [8]

Das especulações da Camerata em Florença e da popularização da Ópera na Itália resultarão o estabelecimento do padrão de canto solo com acompanhamento instrumental (em contraposição à antiga escrita contrapontística e coral) e o início de um longo processo de sistematização da técnica e do treinamento vocal. Figura de relevo nesse processo é Giulio Caccini (1551-1618), a quem se atribui, inclusive, o termo bel canto. É dele também a famosa ária Amarilli, símbolo típico e ideal da linha vocal em legato. [9]


Caccini – Ária “Amarilli, mia bella”. Tenor Beniamino Gigli.

Romantismo

O desenvolvimento da Escola de Canto Italiana chegará a seu apogeu no final do século XVIII e início do século XIX, culminando com a grande produção operística de compositores como Gioachino Rossini (1792-1868), Vincenzo Bellini (1801-1835), Gaetano Donizetti (1797-1848) e, em seguida, Giuseppe Verdi (1813-1901). É o período histórico em que a ópera e os grandes cantores italianos serão admirados em todo mundo ocidental:

Então viajamos até o fim do século XVIII, entramos no século XIX e, então, nos deparamos com um conjunto dos maiores cantores que o mundo já viu e que talvez jamais verá novamente, enquanto que ‘o’ grande trio estava ocupado nascendo e se preparando para produzir as obras-primas operísticas: Rossini, nascido em 1792; Donizetti, nascido em 1797; e Bellini, nascido em 1801. O maior de todos, Verdi, nasceu em 1813. Cada um e todos compuseram para aqueles produtos mais brilhantes da única grande ESCOLA, que invariavelmente ‘levava sons de viva emoção’ a cada parte dos teatros em que atuavam. Era de fato o reino do ‘bel canto’ naqueles dias. Em toda parte se ouvia um magnífico canto ‘legato’ – que significa ‘sem intervalo apreciável na passagem de uma nota para outra’. [10]

Aspectos técnicos

Várias eram as qualidades exigidas para um cantor no início do século XIX, no período auge do bel canto. Tratados teóricos, testemunhos autorizados e o próprio repertório musical escrito na época indicam alguns princípios fundamentais que eram seguidos na formação dos cantores:

  1. Execução da messa di voce: passagem gradual, em uma mesma nota musical, do pp (pianíssimo) ao ff (fortíssimo) e vice-versa.
  2. Execução perfeita do legato: passagem suave, mas nítida, de uma nota para outra.
  3. Execução perfeita do portamento: condução graciosa da voz de uma nota para outra (em um salto melódico), sem quebrar o som ou fazer ouvir as notas intermediárias.
  4. Execução elegante do fraseado musical: apresentação dos desenhos de cada frase, dando relevo exato a cada uma e usando devidamente a respiração para cada segmento.
  5. Execução das sfumature: alternância de dinâmicas (pianíssimo, fortíssimo) em conformidade com o sentido das frases e palavras.
  6. Execução precisa dos ornamentos, tais como os trinados.[11]

4. CONCLUSÃO

Tais são, em linhas gerais, os aspectos analíticos e históricos do conceito de bel canto que convém serem bem assimilados para uma mais frutuosa abordagem dos compositores de Ópera Italiana. Nos próximos textos pretendemos tratar especificamente da obra de Vincenzo Bellini, o chamado “Cisne da Catânia”, conhecido por suas longas e expressivas linhas melódicas.

Nos cum prole pia – benedicat Virgo Maria.

Referências

COELHO, Lauro Machado. A ópera clássica italiana. São Paulo: Perspectiva, 2003.

GILSON, Etiénne. Introdução às artes do belo: o que é filosofar sobre a arte? São Paulo: É Realizações, 2010.

HERBERT-CAESARI, Edgar. Tradition and Gigli. London: Robert Hale Limited, 1963.

JANDER, Owen. BEL CANTO. In: The new grove dictionary of music and musicians. Londres: MacMillan, 2001. p. 793-794.

RANDEL, Don Michael (ed.). The Harvard Dictionary of Music. 4. ed. Massachusetts: The Belknap Press of Harvard University Press, 2003.

TEIXEIRA, Thiago Plaça. Estética musical em Santo Tomás de Aquino. Curitiba: Appris, 2018.

+LAUS DEO VIRGINIQUE MATRI+


Notas:

[1] Cf. TEIXEIRA, 2018.

[2] Cf. GILSON, 2010, p. 38-41.

[3] HERBERT-CAESARI, 1963, p. 85, tradução nossa.

[4] JANDER, 2001.

[5] RANDEL, 2003, p. 93-94, tradução nossa.

[6] HERBERT-CAESARI, 1963, p. 16.

[7] HERBERT-CAESARI, 1963, p. 17, tradução e grifo nossos.

[8] Também o canto eclesiástico sofreu a influência do desenvolvimento da técnica vocal: “Enquanto que os ducados e principados de Itália promoviam a música e o canto com empreendimentos poderosos e devoção infatigável, devemos nos lembrar que as igrejas eram parcialmente responsáveis pela vitalidade da cultura musical. Elas não podiam competir com o padrão estabelecido nas cortes luxuosamente equipadas em que as despesas com produções eram quase ilimitadas. Mais tarde, as autoridades papais em Roma tomaram uma posição decidida e patrocinaram em toda parte a veneração pelo treinamento vocal, particularmente quando a técnica vocal se tornou uma ‘Escola’ realmente tangível”. (HERBERT-CAESARI, 1963, p. 23, tradução nossa)

[9] HERBERT-CAESARI, 1963, p. 15-26.

[10] HERBERT-CAESARI, 1963, p. 71-72, tradução nossa.

[11] COELHO, 2003, p. 425.

Prof. Thiago Plaça Teixeira

O Professor Thiago Plaça Teixeira é Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Paraná, Bacharel em Piano pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná, Mestre e Doutor em Música pela Universidade Federal do Paraná. Foi premiado em concursos de piano e atuou com diversos instrumentistas, cantores e grupos corais em concertos, óperas, festivais e séries de música de câmara. Trabalhou em instituições de ensino superior no Paraná ministrando disciplinas teóricas e práticas. Como pesquisador, direciona seus estudos à música sacra católica, área em que também tem experiência prática atuando como organista.

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