A Estética do Século XIII – Parte 1

A Estética do Século XIII – Parte 1

Autor: Maurice De Wulf (1867-1947)

Retirado do livro “Art and Beauty”, tradução nossa.

Idéias Gerais

A estética do Ocidente do século XIII é digna do grande sistema de filosofia escolástica em que está colocada, e digna também de uma época que foi testemunha de considerável realização artística. As catedrais góticas surgiram do solo da França, que cobriram com um esplêndido florescimento, e quase simultaneamente a nova colheita se espalhou para a Alemanha, para a Inglaterra e para a Espanha. Escultores povoaram essas igrejas com estátuas e deram linguagem às pedras. Com Giotto nasceu a grande pintura; uma vasta onda de literatura religiosa, popular e erudita, foi exibida nos hinos litúrgicos, nos Fioretti de São Francisco e na Divina Comédia de Dante. A arte, a filosofia e, pode-se acrescentar, as ciências desenvolveram-se em ondas concêntricas e fizeram do século XIII um dos mais interessantes da história da civilização. [1]

O prodigioso sucesso da filosofia trouxe consigo um vigoroso estudo do problema estético. Infelizmente, a mentalidade da época não levou a atenção dos filósofos para as numerosas obras de arte que se multiplicavam ao seu redor e que lhes teriam fornecido objetos de observação incomparáveis. Contemporâneos do apogeu artístico, eles estão muito próximos dos fatos para compreender seu valor. É por isso que os pensadores do século XIII, que raciocinavam sobre tudo, não raciocinavam o suficiente sobre a atividade humana que suscitou epopeias, fez surgir as catedrais, fez brilhar os vitrais e deu vida a estátuas de pedra.

Isso deve ser lamentado ainda mais porque suas teorias gerais da metafísica e sua psicologia do belo aplicam-se perfeitamente à beleza artística. Essas teorias formam um todo perfeito, um sistema verdadeiro, mas é necessária uma investigação cuidadosa para descobri-lo. De fato, o século XIII não se deu ao trabalho, não mais que a antiguidade, de reagrupar suas doutrinas estéticas em tratados especiais ou em obras didáticas completas. Mesmo o opúsculo De pulcbro não tem esse caráter. As doutrinas relativas à beleza devem ser extraídas de extensos escritos sobre assuntos mais gerais. Assim é com a pequena obra que por muito tempo foi atribuída a Tomás de Aquino [2] e que pertence a um comentário inédito de Alberto Magno sobre o tratado De divinis nominibus do Pseudo-Areopagita. É o caso daquela outra de Ulrich Engelberti, aluno predileto de Alberto, que este incorporou à Summa de bono. [3] É necessário reunir todas essas teorias dos escritos sobre outros assuntos, reunir ideias dispersas, coordená-las e harmonizá-las com outras doutrinas filosóficas.

A esta primeira dificuldade acrescenta-se outra: o pensamento estético dos escritores do século XIII desenvolve-se em parte sob a forma de comentários. Comentam o tratado de Santo Agostinho e os escritos do Pseudo-Dionísio, notadamente o tratado dos Nomes Divinos que, depois de quatrocentos anos negligenciado, torna-se objeto de admiração geral. Entretanto, o comentário medieval é um documento muito enganoso; pois era costume de um autor transmitir suas próprias doutrinas pessoais, colocando-as sob o patrocínio de um nome conhecido. Assim, encontra-se aí uma mistura de ideias originais e de ideias emprestadas, procedimento característico da época e que nos séculos seguintes se revelou desconcertante para o historiador.

Além de Santo Agostinho e do Pseudo-Dionísio, os escolásticos nada sabiam, pode-se afirmar com segurança, das obras deixadas pelos gregos. O texto da Poética de Aristóteles era desconhecido para eles, mesmo em uma tradução latina; e os fragmentos em sua posse vieram de um comentário defeituoso de Averróis, traduzido então recentemente do árabe pelo alemão Hermann (+1272), que expõe apenas de maneira imperfeita os pensamentos do Mestre. Quanto às Enéadas de Plotino, eram completamente desconhecidas no século XIII.

Natureza e Arte

Seguindo os exemplos dos Padres, os escritores do século XIII falam com entusiasmo sobre a beleza do universo. Cada ente tem seu próprio lugar lá e busca seu fim. A partir da convergência de finalidades particulares resulta a ordem universal. Deus, o Autor, é a garantia da perpetuidade. Ele é a atração universal, o amor que põe em movimento o sol e as estrelas. Isso nos traz à mente o pensamento do Paraíso de Dante: L’amor che muove il sole e l’altre stelle.

O De pulchro de Engelbert exclama com entusiasmo sobre a beleza da criação visível. “Sobre e além da beleza das coisas individuais existe uma beleza especial do universo, e ela resulta da plena realização de uma beleza suprema do mundo, constituída de todas as formas particulares de beleza.” E como mesmo nas esferas superiores não é possível ter perfeição e beleza maiores que a de Deus, todas as partes do universo são feitas de tal forma que nada pode ser mais adequado à sua utilidade ou ser mais belo em sua espécie. Daí se segue que a beleza do universo é incapaz de aumentar ou diminuir, pois toda perda em uma parte é compensada por um aumento em outra; nenhuma diminuição na qualidade, pois mesmo os males realçam a beleza do bem; nenhuma em quantidade, pois o desaparecimento de algumas coisas faz aparecer outras, e a feiura de uma falta é compensada pela beleza que um justo castigo confere. [4]

“O universo”, escreve São Boaventura, “é semelhante a uma magnífica canção que revela sua maravilhosa harmonia, as partes se sucedendo, de modo que todas as coisas são ordenadas em vista de seu fim”. [5] “É comparável”, diz Duns Scotus, “a uma árvore muito bela, da qual as criaturas mortais são as folhas e os galhos, as almas racionais são as flores e os anjos são os frutos”. [6] Ao interpretar a natureza como um poema simbólico, os filósofos formulam em teoria as ideias inspiradoras dos Fioretti e do Cântico do Sol.

A filosofia da arte ocupa pouco espaço. É fácil lembrar a tese aristotélica de que a obra de arte imita a natureza. Um autor anônimo do século XII, inspirado por Aristóteles, recorre a um subterfúgio para explicar o princípio da imitação nas artes industriais e arquitetônicas. Ele declara que as montanhas são os modelos das casas e a plumagem do pássaro os modelos de nossas vestimentas. [7]

Tomás de Aquino dedica à “arte” dois artigos na Summa theologica, onde explica como arte e prudência devem ser distinguidas. [8] O artífice de quem ele fala é tanto um artesão quanto um artista. Santo Tomás não faz qualquer distinção entre as artes plásticas e as industriais; ou melhor, inspira-se na teoria medieval, praticada regularmente pelas corporações, de que toda produção exterior do homem é capaz de manifestar beleza. A arte nada mais é do que a concepção correta que dirige a fabricação das coisas. Mais brevemente: Ars est recta ratio factibilium. A arte, é interessante notar, ocupa seu lugar entre as virtudes sob a direção da razão prática. Aquele que se aplica a ela adquire uma facilidade para moldar coisas materiais, uma disposição permanente para sua própria perfeição. Enquanto a virtude da prudência exige retidão da vontade, a virtude da arte independe dela. Aliquis habitus habet rationem virtutis ex hoc solum quod facit facultatem boni operis – ars autem facit solum facultatem boni operis.

Toda a teoria escolástica dos hábitos é aplicável à virtude da arte e contém em germe um programa de educação artística: a arte deve ser cultivada como qualquer outra virtude. Sua formação pode envolver a intervenção de um mestre, o papel de uma corporação e a influência das tradições de uma escola.

Pode-se reconhecer uma implicação artística na reflexão que, entre outras coisas, São Boaventura toma emprestado de Aristóteles sem aprofundar seu significado: é que uma bela imitação pode ser feita de uma coisa feia; por exemplo, uma bela representação de um demônio feio (quemad-modum dicitur imago diaboli pulchra, quando bene repraesentat foeditatem diaboli). [9] Uma ideia notável de arte, digna de nota, está contida em um verso de Dante ao qual já nos referimos em outro lugar: A arte é neta de Deus. O poeta-filósofo que reserva um lugar de honra ao artista fala de arte com entusiasmo.

Se os filósofos de profissão (Tomás de Aquino, Boaventura, Duns Scotus) não se alongam sobre a beleza da arte, nem mesmo sobre a da natureza, estabelecem em compensação uma doutrina geral da beleza que tentaremos apresentar com clareza.

Prolegômenos metafísicos

Para chegar ao sentido de sua linguagem são necessárias algumas noções preliminares de metafísica escolástica. [10] O ser de natureza corpórea é uma realidade que basta para se sustentar como individualidade impenetrável e independente, substantia prima. O universo sensível é apenas um conjunto de individualidades: homens, cavalos, carvalhos, roseiras, organismos de todos os tipos com uma multidão ainda maior de partículas de matéria inorgânica chamadas átomos, moléculas, íons, elétrons – os nomes pouco importam – e existem miríades delas. Colocada em sua individualidade, cada substância (por exemplo, tal homem, tal carvalho) também está em uma espécie com os indivíduos que lhe são semelhantes. Deve-se esta fixidez da natureza ao elemento constitutivo que precisamente lhe confere esta perfeição de autossuficiência. É isso que torna tal homem, tal carvalho, o que é; e por isso é chamada de forma substancial. A forma é o que confere à substância sua unidade fundamental; e assim, por causa disso, tudo o que está no ser é indiviso (indivisum in se).

Mas, ao lado dessa maneira de ser uma coisa substancial e fundamental, várias realidades adventícias se acrescentam à realidade da substância para determiná-la e existir com sua existência. Além da extensão, atributo primário do corpo, mencionemos entre essas realidades “acidentais” ou coisas acrescentadas, a atividade despendida ou a ação recebida, a forma exterior ou figura do corpo extenso: dois tipos de realidades que a obra de arte expressa com um marcada predileção, e que são ao mesmo tempo a indicação mais reconhecível da espécie e da individualidade. Uma disposição do tronco e o esplendor da copa conferem ao carvalho uma característica que não é constitutiva de sua substancialidade, mas é uma espécie de ser secundário, uma “forma acidental”. O mesmo acontece com o gesto de um lutador, com uma indicação de sofrimento físico ou moral, de uma simples atitude do corpo humano.

A natureza produz apenas substâncias individuais: os escolásticos observam com Aristóteles que ela não engendra nem casas nem templos. Mas reúne em uma massa substâncias individuais: uma floresta, uma montanha, uma paisagem são algumas das agregações de milhares ou milhões de substâncias, e cada uma delas entra ali em sua forma substancial própria. No entanto, dessa assembleia resulta uma espécie de ser secundário, e o mesmo se pode dizer dos agregados de substâncias reunidas pelo homem quando ele constrói edifícios, pinta telas ou esculpe estátuas: a mesma forma acidental cobre várias formas substanciais.

Essas contribuições metafísicas são uma inspiração aristotélica; mas a teoria da forma, que nos é necessário reter principalmente, recebe dos escolásticos ocidentais do século XIII uma expansão considerável e, sob vários pontos de vista, é original. A estética resultante será enxertada no ramo aristotélico, e dele surgirão novos brotos.

Quando a beleza cobre com seus adornos as coisas da natureza e as obras dos homens? Em que consiste? A Escolástica responde: “A beleza está nas coisas; é uma refulgência nelas que estimula, ou pode estimular, na consciência uma impressão característica”. Mais resumidamente: “A beleza é um ato recíproco entre o objeto e o sujeito: é o resultado de uma correspondência íntima de um com o outro”. Vamos analisar essas fórmulas para remover sua obscuridade e natureza esotérica. Ideias claras podem surgir delas.

Beleza, Forma e Unidade

Voltemo-nos primeiro para o objeto, para a realidade externa: a ordem e seus elementos são constitutivos da beleza. “Commensuratio partium elegans”, diz Alberto, o Grande; [11] “aequalitas numerosa” acrescenta Boaventura; [12] “debita proportio” escreve Santo Tomás. [13] A ideia de ordem e de seus constituintes fornece assunto para análise minuciosa; o que Tomás contribui é considerável, e mostramos o valor que ele atribui à multiplicidade das partes, à sua variedade e à sua unidade ou ao plano ordenado que as reúne como um todo.

Não precisamos comparar os diferentes textos para ver que esta tese tem inspiração platônica e aristotélica. Não foi Plotino quem a forneceu. Sem dúvida, algumas ideias neoplatônicas transmitidas por Pseudo-Dionísio a enriqueceram tornando-se parte dela, como o desenho de uma rica tapeçaria, mas a trama não é de origem alexandrina. É antes um número de doutrinas emprestadas de Aristóteles, ampliadas e introduzidas em um sistema: isso é visto pelo fato de que a ordem estética é colocada em estreita relação com a forma e a unidade dos seres; ligada então às ideias de finalidade e de bondade.

A beleza de um ser é a expressão completa de sua perfeição (Plotinus, Pseudo-Dionísio); assim é a expansão daquilo que dá perfeição e unidade: a forma. “Assim como a forma é o princípio da bondade de cada ser”, escreve U. Engelberti, “assim ela realmente constitui a bondade da coisa. A nobreza da forma é uma luz que brilha sobre todas as partes do ente”. Esse esplendor da forma brilha na matéria que lhe foi proporcionada; é o efeito criatural da luz incriada. [14] Não há beleza na natureza ou na arte se a unidade não é claramente evidente, se as partes não estiverem organicamente ligadas ou coerentes. O princípio de coerência será a forma substancial se a beleza afetar o ser em sua essência; uma forma acidental se a beleza constitui algum caráter, algum tipo de ser secundário, ou alguma atividade. Para produzir uma bela obra não basta, digamos, fazer um edifício complicado, multiplicar as personagens numa tela, enredar uma trama dramática. Tudo seria inútil se um princípio de ordem não estendesse seu controle real sobre cada detalhe do conjunto. “A beleza unifica o que toca, e pode fazê-lo por meio da forma do ser que põe em relevo. … Na medida em que a forma resplandece nas partes materiais, o todo é belo e deve sua beleza àquela função que possui de unir.” [15]

Aristóteles, criador da metafísica da forma, não estabelece sua relação com a beleza. Plotino faz isso, no entanto; mas, como ele falha em atribuir a devida realidade a um ser sensível, a forma é apenas uma sombra do real. Os escolásticos reintegram o real no corpóreo e, portanto, homens, animais, plantas, telas, estátuas, dramas e templos são belos por uma beleza que lhes é tão própria quanto a forma que lhes é imanente.

Beleza e finalidade

Mas por que as proporções de uma coisa da natureza ou da arte são o que são, e não outra coisa? Porque elas realizam seu fim, e o fim de um ser determina sua natureza. A perfeição e, consequentemente, a forma e sua beleza são funções da finalidade. A proporção estética não é aleatória; mas o que é adequado ao ser. Um ser é belo quando é como deve ser.

No que diz respeito à beleza plástica do corpo humano, Tomás de Aquino observa que a disposição estética de seus membros, dos pés e das mãos, por exemplo, está ordenada às suas funções. Si vero accipiuntur membra, ut manus et pes et huiusmodi, earum dispositio naturae conveniens est pulchritudo.” [16] Em outro lugar ele descreve em termos sugestivos a imagem sob a qual devemos representar Cristo, o mais belo dos filhos dos homens, e pode-se perguntar se o santo não tinha os olhos fixos no Beau Dieu d’Amiens ou em alguma outra estátua do Salvador que os artistas góticos esculpiam nos portais da Catedral no momento em que ele próprio estava no auge de sua produção literária: “A beleza de uma pessoa não é a de outra; e Cristo possuía a beleza adequada ao estado e dignidade de Sua pessoa. Não devemos representar Cristo como um homem com cabelos loiros e semblante corado; isso não seria adequado para Ele. Ele possuía em alto grau uma beleza corporal que revelava Sua natureza, Sua excelência e o encanto que se experimentava ao se olhar para Ele. Um raio de divindade iluminou este rosto que impressionava a todos”. [17]

Alberto Magno acreditava que o corpo da Santíssima Virgem manifestava os três elementos que constituem a beleza corporal: elegans atque conveniens corporis magnitude, membrorum proportionata formatio, boni et lucidi coloris perfusio. Um dominicano por ele influenciado, João Balbo de Gênova, escreveu algumas páginas sobre a beleza do semblante de Maria, De splendore vultus B. Mariae. Seguindo James de Vorágine, autor da Legenda Áurea, ele vê sua beleza constituída por três cores: o preto de seus cabelos, o branco de seu corpo , e o tom rosado de sua tez. Estes são símbolos de sua humildade, sua virgindade e sua caridade, respectivamente. [18]

Se a constituição do ser é baseada em sua finalidade, esta finalidade não é necessariamente o objeto da percepção estética. Estamos preocupados aqui com os fundamentos metafísicos da beleza. Como os fundamentos de um edifício, eles o sustentam mesmo quando não aparentam fazê-lo. O filósofo procura por esses fundamentos e examina o seu valor. Quem busca o gozo da beleza não se interessa por eles e os exclui de sua contemplação. Sua preocupação é apenas com aquelas obras cuja única razão de existência é sua beleza.

Beleza e Bondade

Um número considerável de teorias escolásticas identifica o belo com o bom. “O belo e o bom são o mesmo”, escreve Pseudo-Dionísio. “Todas as coisas se inclinam com igual força para um e para outro, nenhum objeto tendo algo em si que não participe de um e de outro.” Este texto e outros iniciam discussões importantes nas quais as preocupações gregas serão reconhecidas e cujo desenvolvimento será sem precedentes.

Uma fórmula tomista, rica e concisa, resume esta mistura do antigo e do novo: “Beleza e bondade são idênticos se os consideramos em relação ao ser, que é belo e bom. Mas eles não são o mesmo se considerarmos sua relação com o sujeito para o qual é belo e bom”. [19]

Todo ser é bom, isto é, todo ser tem uma tendência natural para um fim que é o seu bem; busca esse fim e se adapta a ele; a aquisição deste fim ou deste bem o aperfeiçoa; o ser é bom em si mesmo. De fato, o desencadeamento das atividades de um ser não teria razão suficiente se não resultasse para o próprio ser um aumento de sua realidade. Considerando apenas este aspecto da realidade ou perfeição, o ser e o bem são conversíveis; ambos dependem de uma forma substancial ou do constituinte primordial do ser. O bom é o ser com uma inclinação, um termo. Elimine essa inclinação e você esvaziará a noção de bondade daquilo que a distingue da noção de ser.

Do mesmo modo, a beleza de um ser é sua perfeição e a realização de sua forma. Mas essa perfeição deve ser percebida por alguém, deve gerar em um sujeito dotado de poder intelectual o prazer da contemplação. Elimine essa relação com um sujeito cognoscente e você esvaziará a noção de beleza daquilo que a distingue da noção de ser.

Vamos resumir. Perfeição e ser são noções absolutas: bondade e beleza são ideias relativas, implicando uma relação com uma apetência ou com o prazer de conhecer.

Disso decorrem as duas diferenças principais entre a teoria grega da identidade do belo e do bom e a doutrina escolástica de suas semelhanças e diferenças. Por um lado, a identificação objetiva do belo com o bom admite uma restrição: a bondade excede a beleza em extensão. Todos os seres são bons: sua finalidade interna os atrai para um objetivo de maneira consciente ou inconsciente. Nem todos são belos, pois alguns são tão banais que deixam indiferente o sujeito que os contempla: a pobreza dos elementos ontológicos não desperta o interesse estético. [20] Por isso um ato moralmente bom não é necessariamente belo. Tais são as ocupações corriqueiras da vida, que são moralmente boas sem serem o que se designa como belas.

De outro ponto de vista, a identificação do belo com o bom admite uma extensão mais ampla. Platão e Aristóteles o aplicam apenas à ordem moral, mas os escolásticos o estendem ao mundo físico, onde reina o determinismo. Não deixa de ser verdade, porém, que a distinção entre as duas ideias de bem e beleza aparece com maior nitidez quando a transferimos para o campo da ação humana. Um ato de heroísmo é ao mesmo tempo belo e bom. O transeunte que com risco de vida se joga na água para salvar uma pessoa que se afoga faz uma ação boa, pois a devoção ao próximo é uma dessas formas supremas de moralidade que engrandecem o homem a seus próprios olhos e são para para ele uma fonte de mérito. Ao mesmo tempo, esse resgate é uma ação bela, não em suas circunstâncias materiais que tornam o espetáculo angustiante, mas em seu significado moral, e isso as testemunhas de um drama não deixarão de reconhecer. Mas é interessante notar que o ato é bom para quem o pratica e belo para quem o vê. O herói de um drama se retirará de cena com um legítimo sentimento de satisfação interior, mas não admirará sua própria conduta do ponto de vista estético. Ontologicamente, o ato moral é o mesmo ato em sua bondade e em sua beleza; ele assume diferentes aspectos apenas quando o relacionamos primeiro a um sujeito que recebe dele grandeza e mérito, e depois a alguém que desfruta do espetáculo de sua combinação harmoniosa.

Assim, é na impressão produzida no ser cognoscente que se aperfeiçoa a noção de beleza. Os efeitos psicológicos do belo são inseparáveis de sua realidade ontológica. Seu estudo nos apresenta um novo aspecto da questão.


Notas:

[1] Ver nosso Civilization and Philosophy in the Middle Ages (Princeton University Press, 1922), cap. 5 e 6.

[2] Publicado sob seu nome por Uccelli em 1867.

[3] Bk. II, tract. 3, cap. 4, De pulchro. Publicado com um excelente estudo por Grabmann, Des Ulrich Engelberti von Strassburg, O.P. (+ 1277) Abhandlung De pulchro, 1925.

[4] Ed. Grabmann, pp. 83f.

[5] Comentarios às Sentenças, I, 787 (edição Quarracchi).

[6] De rerum principio, q. 8, a. 4. Este escrito foi falsamente atribuído a Duns Scotus, mas é anterior à sua época. Ver nosso Histoire de la philosophie médiévale (ed. 1936), II, 334.

[7] Bamberg Codex na classificação das ciências (século XII). Grabmann, Geschichte der Scholastischen Methode, II, 38.

[8] Ia IIae, q. 57, a. 3, 4.

[9] Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo, I, dist. 31, parte 2, a. 1, q. 3.

[10] Ver nosso Initiation à la philosophie thomiste, 1932, cap. 4 e 5.

[11] Summa theol., q. 26, m. 1, a. 2, p. 3.

[12] Luminaria ecclesiae, Sermão 6 (ed. Venice, 1858), I, 31.

[13] Summa theol., Ia, q. 5, a. 4.

[14] Ed. Grabmann, pp. 74f.

[15] “Pulchrum congregat omnia, et hoc habet ex parte formae cujus resplendentia facit pulchrum … secundum autem quod (forma) resplendet super partes materiae, sic est pulchrum habens rationem congregandi.” Alberto Magno, De pulchro, p. 29.

[16] Summa theol., Ia IIae, q. 54, a. 1. Em linguagem escolástica, a natureza é a essência de um ser considerado como fonte de atividades, dirigida a um fim ao qual tais atividades tendem.

[17] In Davidem, Ps. 44:2.

[18] Grabmann, op. cit., p. 17.

[19] Summa theol., Ia, q. 5, a. 4.

[20] Não pensamos que os escolásticos consideravam a beleza como um transcendental (quod transcendit omne genus).

Prof. Thiago Plaça Teixeira

O Professor Thiago Plaça Teixeira é Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Paraná, Bacharel em Piano pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná, Mestre e Doutor em Música pela Universidade Federal do Paraná. Foi premiado em concursos de piano e atuou com diversos instrumentistas, cantores e grupos corais em concertos, óperas, festivais e séries de música de câmara. Trabalhou em instituições de ensino superior no Paraná ministrando disciplinas teóricas e práticas. Como pesquisador, direciona seus estudos à música sacra católica, área em que também tem experiência prática atuando como organista.

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