O Oratório barroco: a música no “Oratorio del Santissimo Crocifisso”

O Oratório barroco: a música no “Oratorio del Santissimo Crocifisso”

1. Introdução

No presente artigo vou tratar sobre a música executada no Oratorio del Santissimo Crocifisso, um pequeno oratório ainda existente em Roma, e seu papel no desenvolvimento do “oratório” enquanto gênero musical. Essa interação entre determinados edifícios arquitetônicos e o desenvolvimento dos estilos musicais é um dos temas que particularmente me interessam.

Por um lado, temos aqueles estilos e formas musicais que surgiram e se desenvolveram para atender diretamente às necessidades de um determinado espaço arquitetônico, como, por exemplo, a polifonia do século XIII na Catedral de Notre Dame (Paris) ou o policoralismo do final da Renascença na Basílica de São Marcos (Veneza). Por outro lado, há também aqueles compositores que desenvolveram suas carreiras em cargos diretamente relacionados a determinados edifícios, como Haydn e os palácios da família Esterházy. Nesse sentido, no que concerne ao desenvolvimento dos oratórios italianos em particular, teve especial importância a música executada no Oratorio del Santissimo Crocifisso (ou simplesmente Crocifisso), o qual, juntamente com San Girolamo della Carità e Chiesa Nuova, era um dos principais centros de execução de oratórios musicais em Roma no período barroco.

2. A Igreja de São Marcelo e o Crucifixo milagroso

A Igreja de San Marcello al Corso (Figura 1) está localizada na Via del Corso, importante rua de Roma, e é dedicada ao Papa Marcelo I (+309). O Papa Adriano I (700-795) mandou construir uma igreja no mesmo local em que, desde o século V, já havia o título de Marcelo. Tal igreja foi destruída em 1519 por um incêndio, vindo a ser reconstruída e finalizada apenas entre 1592 e 1597. Nesse incêndio houve um fato miraculoso, pois em meio aos escombros permaneceu intacto o crucifixo do altar principal, iluminado por uma lamparina que ainda ardia. No ano de 1522, um novo milagre: uma grande peste atingia Roma e se realiza então uma procissão, repetida durante 16 dias, com aquele mesmo crucifixo desde a Igreja de São Marcelo até a Basílica de São Pedro. Resulta que quando ele retornou à sua origem, a epidemia cessou.

Figura 1 – Igreja de São Marcelo em Roma (o exterior, o crucifixo milagroso e o interior)

3. O Oratorio del Santissimo Crocifisso

Então surge em torno a esse crucifixo milagroso uma grande devoção popular. Em 1526, o Papa Clemente VII aprova a “Companhia do Santíssimo Crucifixo”, fundada por um grupo de nobres romanos, a qual depois se torna a “Arquiconfraria do Santíssimo Crucifixo”, que, por sua vez, constrói em 1568 o seu oratório, bem próximo à Igreja de São Marcelo. Trata-se justamente do Oratorio del Santissimo Crocifisso (Figura 2).

Figura 2 – Oratorio del Santissimo Crocifisso em Roma (exterior e interior)

As cerimônias da Arquiconfraria nos séculos XVI e XVII ocorriam durante a Quaresma, com destaque para as procissões da Igreja de São Marcelo até a Basílica de São Pedro na Quinta ou na Sexta-feira Santa. No Ano Santo de 1650, tal procissão chegou a ter 15.000 participantes.

4. A importância da música no Crocifisso

Durante a Semana Santa se cantava o Ofício no Crocifisso e havia ainda um serviço com música especialmente nas cinco sextas-feiras da Quaresma, para cada uma das quais um guardião da Arquiconfraria deveria contratar um Maestro di Cappella para o trabalho musical. Apesar da importância da música em tais ocasiões, não há um corpus de música que tenha sido especificamente escrita para ser executada no Crocifisso. Entretanto, sabemos que vários dos mais famosos músicos da época estiveram entre os responsáveis pela música ali produzida: Palestrina, Marenzio, Anerio, Carissimi etc. Além disso, sabemos que também eram cantados motetos latinos e que a partir de 1639 começaram a ser executados oratórios no Crocifisso, local que se torna então referência na promoção de obras em Latim (em contraposição ao chamado oratorio volgare, em italiano). [1]

5. Os Oratórios

Do ano de 1639 temos um interessante relato de André Maugars (1580-1645), um instrumentista francês em visita a Roma, que assim descreve a música ouvida no Crocifisso:

Existe ainda um outro tipo de música, que não está em uso na França e que, por essa razão, merece um relato detalhado. É denominado ‘stile récitatif’. O melhor que ouvi foi no Oratório de São Marcelo, onde existe uma congregação dos Irmãos do Santo Crucifixo, composta pelos mais importantes senhores de Roma, que consequentemente dispõem dos meios para reunir os melhores que a Itália produz; e de fato, é o maior orgulho possível aos músicos o estarem ali, e os compositores mais competentes solicitam a honra de ali serem ouvidas suas composições e procuram mostrar nelas todos os melhores resultados de seu estudo.

Esta música admirável e arrebatadora é tocada apenas nas sextas-feiras da Quaresma, das três às seis horas. A igreja não é tão grande quanto a Sainte-Chapelle em Paris; no final [da igreja] existe um amplo mezanino [‘Jubé‘] com um órgão de tamanho médio, muito suave e muito adequado para as vozes. Nos dois lados da igreja existem mais dois pequenos palcos [‘Tribunes‘] onde ficavam os mais excelentes instrumentistas. As vozes começavam com um salmo em forma de moteto, e então todos os instrumentos tocavam uma sinfonia muito boa. Depois, as vozes cantavam uma história [‘une histoire‘] do Antigo Testamento na forma de uma peça espiritual, tal como a de Susanna, de Judith e Holofernes, ou de Davi e Golias. Cada cantor representava um personagem da história e expressava perfeitamente a força das palavras. Em seguida, um dos pregadores mais célebres dava a exortação. Feito isso, os cantores executavam o Evangelho do dia, tal como o da história da mulher samaritana, da mulher de Caná, de Lázaro,da Madalena ou da Paixão de Nosso Senhor; os cantores imitavam perfeitamente os diversos personagens mencionados pelo evangelista. Não pude elogiar o suficiente essa ‘musique récitatif’; é necessário ouvi-lo ‘in loco‘ para julgar bem o seu mérito.

Quanto à música instrumental, consistia em um órgão, um grande cravo, uma lira, dois ou três violinos e dois ou três archlutes. [2]

Do relato de Maugars se depreende a relação dos eventos musicais nos serviços religiosos do Crocifisso: 1º) um moteto com texto de algum salmo; 2º) um número instrumental; 3º) uma peça musical sobre uma história do Antigo Testamento; 4º) um sermão; e 5º) uma peça musical sobre uma história do Novo Testamento. Maugars não chega a empregar o termo “oratório”, mas apenas “moteto”. Quando ele se refere a “histoire”, provavelmente se trata do texto da narrativa bíblica. A execução antes e depois do sermão de duas composições independentes (motetos de diálogo ou breves oratórios), tal como é por ele descrita, tem paralelo com a antiga prática de oratórios em língua italiana. [3]

6. Forma musical

Em 1640, ou seja, um ano depois do relato de Maugars, Pietro Della Valle (1586-1652) menciona em seu diário uma performance no Crocifisso de uma obra chamada Dialogo di Esther, referida por ele como sendo um “oratório” em uma posterior carta dele a G. B. Doni em 1647. Trata-se da mais antiga composição em Latim chamada de oratório pelo seu próprio compositor. Estes primeiros oratórios costumavam ser de curta duração (em torno de 12 minutos) e este oratório específico de Della Valle apresentava um pequeno contingente de executantes: três instrumentistas e cinco cantores. [4]

Archangelo Spagna (1636–1720), um libretista de oratório que publicou em 1706 um esboço de história do oratório enquanto gênero musical, assim descreve os oratórios inicialmente executados no Crocifisso:

… eram diferentes em cada parte do serviço do oratório, sem ligação da primeira com a segunda parte. Os temas eram tirados da Sagrada Escritura; os recitativos eram em prosa com as mesmas palavras do texto sagrado (‘sacro testo‘), por isso, apropriadamente se deu a ela [a parte narrativa] o nome de texto (‘testo‘). A maior atenção era dada à multiplicação dos instrumentos musicais, separados em vários coros para a grandiosidade da pompa; e, para dar lugar ao grande número de cantores que ali se apresentavam, várias plataformas foram construídas; mas estas, maiores e mais decorados, agora servem para acomodar muitos cavalheiros e senhoras que são convidados e se reúnem para ouvir. Depois, o mesmo tema foi dividido em duas partes, em imitação do ‘oratorii volgari’, e o ‘testo’ foi abolido, como já foi dito. [5]

Spagna escreve isso já no século XVIII. A partir desse dado, Smither (1977) sintetiza assim o desenvolvimento dos oratórios no Crocifisso durante o século XVII:

1) Passa-se da execução de duas obras não conectadas, antes e depois do sermão, para uma única obra em duas partes;

2) Passa-se da execução usando grande número de cantores e instrumentistas para a utilização de pequeno grupo vocal e instrumental;

3) Deixa-se de utilizar o testo e o libreto passa a ser eminentemente dramático.

7. Instrumentação

Sobre a instrumentação utilizada ao longo do século XVII nos oratórios executados no Crocifisso temos dois relatos do viajante Francis Mortoft. Em 7 de março de 1659, segunda sexta-feira da Quaresma, ele visitou o local e assim descreve a parte musical:

Fomos a uma pequena igreja chamada Auditório [isto é, oratório] de São Marcelo, que fica atrás do Corso, onde ouvimos música. Este local foi designado para o propósito, havendo todas as sextas-feiras da Quaresma um pequeno grupo das melhores vozes de Roma nesse local. Imagino que nesta igrejinha estavam todos os estrangeiros de Roma, onde, depois de esperar umas duas horas, finalmente a música começou com cerca de uma dúzia de cantores. Um alaúde, violino e órgãos, que soavam muito suavemente, especialmente o alaúde e o violino eram tão especiais que, estando uma vez fora de Roma, não se pode esperar ouvir algo semelhante. [6]

Da década de 1660 há referências de muitos pagamentos para músicos que atuavam em oratórios no Crocifisso, indicando que se realizavam obras policorais com dois ou três coros (com uma pessoa para cada voz), um órgão para cada coro e um conjunto de instrumentos. Por volta de 1690 o contingente de músicos parece ser o de seis vozes, um órgão e de três a seis instrumentos. [7]

8. Conclusão

O oratório do Crocifisso permaneceu sendo em Roma o centro da performance de oratórios em Latim até 1710, quando a Arquiconfraria deixou de patrociná-los. Somente no Ano Santo de 1725 a prática quaresmal foi revivida. Dois famosos compositores ativos lá nesse período tardio foram Alessandro Stradella (1643-1682) e Alessandro Scarlatti (1660-1725). De todo o rico repertório apresentado no Crocifisso, a maioria da música não sobreviveu, mas permaneceram vários libretos impressos do período 1678-1725. Eles eram dirigidos a ajudar o ouvinte e incluíam o texto latino integral, um resumo da história em italiano e às vezes a tradução italiana do texto latino. [8]

9. Exemplo musical

Encerrando o artigo, deixo abaixo um exemplo de oratório que sabemos ter sido executado no Crocifisso. (Vídeo 1) Trata-se do único oratório em Latim composto por Alessandro Scarlatti e lá apresentado em 1700: Davidis pugna et victoria (“A luta e a vitória de Davi”). Trata-se obviamente do relato bíblico para a batalha entre Davi e o gigante Golias. A obra emprega 5 cantores solistas (SSATB: soprano-soprano-contralto-tenor-baixo) e um coro duplo (SATB-SATB). Para a época pode ser considerada uma obra conservadora, já que ainda utiliza elementos que não eram mais empregados, tais como o testo, as árias com baixo ostinato e árias estróficas.

No exemplo abaixo estão os números musicais 14, 15 e 16 da Parte 01 desse referido oratório de Scarlatti com suas respectivas letras em Latim. O primeiro número é o Coro dos israelitas: Eamus, fugiamus (Israelites). Em seguida, temos um breve recitativo de Davi (soprano), Quo fugitis mea turba?, e uma ária dele, Verte tela, verte faces. Nessa ária, Davi convoca os soldados que pretendiam fugir: “Volvei, homens! volvei com as armas, com as tochas e com os laços fugazes. Ao audaz não só um único êxito virá; Ao temeroso ruína dupla pouco será.”


Vídeo 1 – Coro, recitativo e ária do Oratório Davidis pugna et victoria, de Alessandro Scarlatti

Referências

SMITHER, Howard E. A History of the Oratorio. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1977. v. 1: The Oratorio in the Baroque Era: Italy, Vienna, Paris Centuries.

+LAUS DEO VIRGINIQUE MATRI+


[1] SMITHER, 1977.

[2] Apud SMITHER, 1977, tradução minha.

[3] SMITHER, 1977.

[4] Idem.

[5] Apud SMITHER, 1977, tradução nossa.

[6] Apud SMITHER, 1977, tradução nossa.

[7] SMITHER, 1977.

[8] Idem.

Prof. Thiago Plaça Teixeira

O Professor Thiago Plaça Teixeira é Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Paraná, Bacharel em Piano pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná, Mestre e Doutor em Música pela Universidade Federal do Paraná. Foi premiado em concursos de piano e atuou com diversos instrumentistas, cantores e grupos corais em concertos, óperas, festivais e séries de música de câmara. Trabalhou em instituições de ensino superior no Paraná ministrando disciplinas teóricas e práticas. Como pesquisador, direciona seus estudos à música sacra católica, área em que também tem experiência prática atuando como organista.

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