Os Oratórios de Haydn: “Il ritorno di Tobia” (1774-75)
Prof. Thiago Plaça Teixeira
1. Introdução
Um dos gêneros musicais em que tenho especial interesse é o do Oratório. Pretendo tratar com frequência aqui no blog sobre algum oratório específico. Inicio hoje com um de Joseph Haydn (1732-1809): “Il ritorno di Tobia”.
Em primeiro lugar, é importante alguma definição de Oratório. Trata-se basicamente de uma obra musical (geralmente com orquestra, coro e cantores solistas) não encenada, com um texto dramático ou narrativo-dramático baseado em uma história bíblica, em uma vida de santo ou em algum outro tema espiritual. Quando o texto é dramático, o enredo se desenrola inteiramente por meio de diálogos entre os personagens. Quando o texto é narrativo-dramático, parte do enredo é feito pelos diálogos e parte é revelado por um narrador.
Enquanto gênero musical, o oratório se estabelece a partir de aproximadamente 1660 na Itália, ainda que às vezes com outros nomes: cantata, dramma sacro, componimiento sacro etc. Naqueles primeiros tempos, o texto era geralmente em Italiano ou em Latim, escrito em versos. Os oratórios geralmente eram constituídos por duas partes e o estilo tanto dos versos como da música eram essencialmente o mesmo das óperas da época. A função dos oratórios era a de um entretenimento edificante apresentado em um oratório (sala de oração, de onde vem o termo oratorio) ou em algum palácio privado.[1]
2. Joseph Haydn
Nasceu em 1732 na cidade de Rohrau (Áustria). Foi aceito como menino cantor em 1740 na Catedral de Santo Estêvão em Viena, ocasião em que se sabe que recebeu formação tanto em canto como em instrumentos de teclado. Por volta de 1750, Haydn deixa o coro e trabalha como professor e músico livre até receber seu primeiro emprego fixo como diretor musical do Conde Morzin[2], por volta de 1759. Mas o seu emprego definitivo será como Kapellmeister da família Esterházy, a partir de 1761 e até sua morte, em 1809.
Até 1790, Haydn se divide entre duas residências dos Esterházy: o palácio de Eisenstadt (ao sul de Viena) e, desde 1766-67, o palácio Esterháza (oeste da Hungria). Excetuando-se algumas visitas a Viena, Haydn passará praticamente 30 anos em relativo isolamento nesses palácios em que a vida musical era intensa. É nesse contexto que ele se tornará um brilhante compositor em praticamente todos os gêneros musicais da época (música sacra, música sinfônica, ópera etc.). Em 1790 morre o Príncipe Nikolaus e o seu sucessor, Príncipe Anton, mantém Haydn como Kappelmeister, mas o libera de deveres inerentes ao cargo. Nesse novo período, Haydn muda-se para Viena e visita Londres também em duas ocasiões (1791-92 e 1794-95). Morre em Viena, em 1809.
3. Haydn e o Oratório
Há quatro oratórios escritos por Haydn: “Il ritorno di Tobia” (“O retorno de Tobias”), “Die sieben letzten Worte unseres Erlösers am Kreuze” (“As sete últimas palavras de Nosso Salvador na Cruz”), “Die Schöpfung” (“A Criação”) e “Die Jahreszeiten” (“As Estações”).
Em 1795, quando Haydn retornou de Londres para Viena, ele se tornou uma espécie de herói cultural e boa parte de sua produção musical subsequente foi apresentada como importantes eventos artísticos. Daí que nessa nova fase de sua carreira Haydn dedicará pouca atenção à música instrumental, com exceção dos quartetos de cordas, dando preferência às obras de maior envergadura, tais como as missas e os oratórios. Será dessa época os seus dois grandes e mais famosos oratórios, “Die Schöpfung” (“A Criação”, 1797-98) e “Die Jahreszeiten” (“As Estações”, 1801).
A obra “Die sieben letzten…” é, na verdade, uma obra orquestral escrita por Haydn em 1786 para a Sexta-feira Santa em Cádiz (Espanha), adaptada depois para quartetos de cordas (1787) e também como oratório (1796), mas alguns autores, entretanto, não chegam a considera-lo verdadeiro oratório. (WEBSTER, 2005). Quanto a “Il ritorno di Tobia”, trata-se de um oratório em italiano, escrito em 1774-75. É dessa obra que trataremos especificamente no presente artigo.
Na época em que compôs esse oratório, Haydn já tinha escrito mais de 60 sinfonias e muita música de câmara, mas quando lhe foi solicitado que escrevesse uma breve autobiografia para uma enciclopédia austríaca, ele destacou como obras de sucesso apenas 3 de suas óperas, o seu “Stabat Mater” e justamente “Il ritorno di Tobia”.[3]
4. Contexto
A composição de oratórios, diferentemente da de óperas italianas e de música sacra, não estava entre os deveres de ofício de Haydn em Eisenstadt ou em Esterháza. E, de fato, no período em que esteve a serviço ativo dos Esterházy, Haydn compõe apenas um oratório, “Il ritorno di Tobia”. É um grande exemplo de oratório italiano do final do século XVIII e de música vocal austríaco-italiana barroca tardia. Há várias árias de bravura, recitativos expressivos e em 1784 o próprio Haydn modernizou a obra, encurtando algumas árias, inserindo novos coros e revisando a instrumentação.[4]
Haydn compôs “Il ritorno di Tobia” em Esterháza[5] e destinava-se a ser executado em Viena, por ocasião dos concertos de Quaresma da Tonkünstler-Societät – instituição beneficente para músicos vienenses – no Kärntnerthor-Theater em 2 e em 4 de abril de 1775.[6] Pode-se dizer que foi a maior obra de Haydn para Viena desde que iniciou seus trabalhos para os Esterházy. Possivelmente havia mais de 180 músicos (orquestra, coro e solistas) para a estreia do oratório. Sabe-se também que foi um grande sucesso e que chamou a atenção de Viena para as habilidades de Haydn. Foi novamente executado em 1784 e em 1808. Durante a vida de Haydn houve ainda montagens fora de Viena: Berlim (Konzert der Musikliebhaber, 1777), Roma (Oratório de S. Filipe Néri, 1783), Lisboa (Palácio da Ajuda, 1784) e Leipzig (Gewandhauskonzert, 1802).[7]
5. Libreto: Aspectos gerais
O libreto de “Il ritorno di Tobia” foi escrito por Giovanni Gastone Boccherini (1742-1800), membro da Academia Arcadiana e irmão mais velho do compositor Luigi Boccherini. O texto é baseado nos capítulos 5 a 12 do Livro de Tobias da Sagrada Escritura (Bíblia). Trata-se de um tema comumente empregado nas artes visuais e literárias para representar a devoção familiar, as virtudes de obediência a Deus e também a ação da Providência Divina na vida humana. Os personagens são: 1) Tobit (Baixo); 2) Anna (Contralto); 3) Tobias (Tenor); 4) Sara (Soprano); 5) Azarias/Anjo Rafael (Soprano); 6) Servos hebreus de Tobit (Coro a 4 vozes). A ação se passa em Nínive, na casa de Tobit e Anna. Diz respeito: (1) à espera ansiosa de Tobit e Anna pelo retorno do filho, (2) ao retorno de Tobias, com Sara e Rafael, (3) à restauração da visão de Tobit e (4) à revelação do Anjo Rafael.[8]
6. Libreto: Estilo
O libreto é essencialmente metastasiano, isto é, segue o formato e a organização característicos das óperas sérias italianas feitas sobre libretos de Pietro Metastasio (1698-1782)[9]. É observada a harmonia de tempo, de lugar e de ação no enredo, sendo narrados como algo passado aqueles eventos que ocorreram em outro tempo e lugar. O desenvolvimento se dá basicamente pela tradicional alternância entre recitativos e árias (único conjunto musical é um dueto) e cada uma das duas partes se encerra com um coro. Na versão de 1775, há oito números na Parte 1 e sete números na Parte II, o que também é comum nos libretos da época. As árias de Boccherini, contudo, tendem a ser mais amplas e os comprimentos de verso tendem à maior irregularidade. Na versão de 1784 foram acrescentados coros que contribuíram para sua simetria, ocorrendo no mesmo ponto de cada uma das duas partes.[10]
7. Libreto: Sinopse
Entre os israelitas cativos na Assíria, vivia um homem muito piedoso chamado Tobit, casado com Anna, e ele manda seu filho, Tobias, a Ragés para cobrar de Gabelo uma determinada dívida. O jovem Tobias procura, então, um companheiro para a longa viagem e encontra um moço que para isso se ofereceu, Azarias, mas que é, na verdade, o Anjo Rafael. Durante a jornada, chegam ao rio Tígris e Tobias é ali atacado por um grande peixe. O anjo lhe diz para não se assustar, para segurar o animal pelas guelras, puxá-lo para fora, estripá-lo e guardar o coração, o fel e o fígado, pois se usam como remédio. Tendo chegado a Ragés, o anjo adverte a Tobias de que lá mora um de seus parentes, Raguel, e que ele tem uma filha chamada Sara, com quem Tobias deve se unir em matrimônio. Tobias sabe que Sara já havia tido sete maridos e todos foram mortos pelo demônio, mas ele é aconselhado e protegido por Rafael. Tobias, Sara e o anjo retornam depois a Nínive, onde Tobit e Anna já estão tristes pela demora do filho. Chegando à casa paterna, Tobias, a conselho do anjo, esfrega os olhos do pai com o fel do peixe e, assim, desprendem-se dos olhos do ancião uma película branca e ele recupera a vista. Ao final, o anjo revela ser Rafael, um dos sete que estão sempre diante do Senhor, e desaparece.[11]
8. Estrutura da Parte I
O Oratório divide-se em duas partes. A Parte I inicia-se com um coro, combinado com solos de Anna e Tobit, que são uma oração pedindo misericórdia pela infelicidade dos pais que aguardam o retorno do filho. Nos recitativos e nas árias Anna e Tobit ficam caracterizados como personagens opostos: Anna é de pouca fé, ansiosa, crendo que houve alguma catástrofe com o filho; Tobit é piedoso, generoso, esperançoso, confiante na bondade divina. Anna vê ao longe Azarias (Anjo Rafael) que chega sozinho, conversa depois com ele e, assim, o anjo vai lhe revelando toda a jornada ocorrida: o peixe, o matrimônio, Tobias salvo do demônio, e ainda prediz a cura da visão de Tobit. Tobias e Sara chegam na sequência e, juntamente com Anna, ajoelham-se aos pés de Tobit para pedir a bênção. Tobias diz ao pai que irá restaurar a sua vista. E assim se encerra a Parte I, com um Coro, combinado com os cinco solistas, em uma oração suplicando que se realize a cura da cegueira de Tobit.[12]
9. Estrutura da Parte II
A Parte II refere-se a Tobias ministrando o remédio nos olhos do pai. A tensão dramática ocorre basicamente pela sucessão de insucessos. Primeiramente o fel do peixe arde demasiadamente os olhos de Tobit, mas por fim as escamas lhe caem dos olhos. Mas quando tenta abrir os olhos, a luz é muito forte a Tobit e ele se recusa. Há um dueto de Anna e Tobias e depois um longo recitativo obbligato para todos os cantores e Sara revela então que a vista de Tobit foi restaurada e também que, sob as instruções de Rafael, gradualmente ele foi se acostumando à claridade. Tobit alegra-se por poder ver a família. Azarias entra e Tobit quer recompensá-lo, mas ele recusa, revela que é o Anjo Rafael, explica que fez tudo em resposta às orações de Tobit e Sara. Também prediz a queda de Nínive, a reconstrução de Jerusalém e, finalmente, sobe aos céus em uma nuvem. Encerra-se o Oratório com um coro final e os quatro personagens que restaram em cena louvam a Deus pela sua misericórdia.[13]
10. Os números musicais
Como já visto, além da abertura orquestral, há, na versão de 1775, oito números musicais na Parte 1; e sete números na Parte 2. Abaixo segue a relação de todos eles, com a respectiva indicação do tipo de cada um, Coro, Recitativo, Ária ou Dueto.[14]
Abertura (Orquestra)
PARTE 1
1. Coro (Anna, Tobit), Pietà d’um infelice
2a. Recitativo (Anna, Tobit), Né comparisce
2b. Ária (Anna), Sudò il guerriero
3a. Recitativo (Tobit), Deh modera il dolor
3b. Ária (Tobit), Ah tu m’ascolta
4a. Recitativo (Anna, Rafael), Non è quello Azaria
4b. Ária (Rafael), Anna, m’ascolta!
5a. Recitativo (Anna), Che disse?
5b. Ária (Anna), Ah gran Dio
5c. Coro [1784], Ah gran Dio
6a. Recitativo (Tobias, Sara), Sara, mia dolce sposa
6b. Ária (Tobias), Quando mi dona un cenno
7a. Recitativo (Sara), Somme grazie ti rendo
7b. Ária. (Sara), Del caro sposo
8. Recitativo (Rafael, Tobit, Sara, Anna, Tobias), Rivelarti a Dio piacque
9. Coro (Rafael, Sara, Anna, Tobias, Tobit), Odi le nostre voci
PARTE 2
10a. Recitativo (Anna, Sara, Rafael), Oh della santa fé stupendi effetti!
10b. Ária (Rafael), Come se a voi parlasse
11a. Recitativo (Anna, Sara), Ad Azaria nel volto
11b. Ária (Sara), Non parmi esser fra gl’uomini
12a. Recitativo (Anna, Tobias),Che soave parlar!
12b. Ária (Tobias), Quel felice nocchier
13a. Recitativo (Anna), Giusta bramal’affretta
13b. Ária (Anna), Come in sogno un stuol m’apparve
13c. Coro [1784], Svenisce in un momento
14a. Recitativo (Tobias, Tobir, Rafael), Ah dove corri, o padre?
14b. Ária (Tobias), Invan lo chiedi, amico
15a. Recitativo (Tobias, Anna), Che fulmine improviso!
15b. Dueto (Anna, Tobias), Dunque, oh Dio
16. Recitativo (Rafael, Sara, Anna, Tobias, Tobit), Qui di morir si parla
17. Coro (Sara, Anna, Tobias, Tobit), Io non oso alzar
11. Tonalidades
O Oratório começa e termina em Dó maior: o início se dá com uma introdução Largo em Dó menor e um Allegro em Dó maior; e o final com um Coro em Dó maior. Essa mesma tonalidade é encontrada também nos n. 5b e 5c (Ah gran Dio, ária de Anna e Coro). Algumas outras tonalidades parecem ter sido escolhidas para fins de representação de afetos, tal como o Mi bemol maior, que é usado para o coral/solos que pedem misericórdia pelo sofrimento de Anna e Tobit (n. 1, Pietà d’um infelice); e novamente para o dueto (n. 15b, Dunque, oh Dio), em que Anna e Tobias temem pela recuperação da vista de Tobit. Além disso, outro aspecto interessante das tonalidades do Oratório é a simetria tonal existente entre as Partes 1 e 2 do Oratório:
- as primeiras duas árias da Parte 1 (n. 2b, Sudò il guerriero, e 3b, Ah tu m’ascolta) são nas mesmas tonalidades das primeiras duas da parte 2 (n. 10b, Come se a voi parlasse, e 11b, Non parmi esser fra gl’uomini);
- as tonalidades dos últimos três números de cada Parte estabelecem entre si uma relação de um trítono e de uma terça (Mi maior, Si bemol maior e Ré maior na Parte 1; Lá maior, Mi bemol maior e Dó maior na Parte 2).[15]
12. Intrumentação
Haydn utiliza neste Oratório uma orquestra mais ampla que o comumente empregado nos oratórios italianos da época: cordas, contínuo, pares de flautas, oboés, fagotes, corne inglês, trompa francesa, trompetes, trombones e tímpano. Sonoridades mais sutis são encontradas em umas das árias de Sara (n. 11b, Non parmi esser fra gl’uomini), na qual ela expressa sua alegria por estar com a família de Tobias e diz então que parece estar “entre os anjos”. Haydn utiliza aqui cornes ingleses para dar um matiz mais delicado ao som da orquestra e, além disso, todos os sopros fazem solo em vários momentos, ficando muitas vezes em relevo sobre as cordas suaves e frequentemente em pizzicato (Vídeo 01).[16]
Vídeo 01
13. Forma musical
A Abertura de “Il ritorno di Tobia” tem a particularidade de já antecipar o Coro de abertura da Parte 1, pois o principal motivo da seção Largo (Dó menor) inicial torna-se um tema importante no início do Coro, mas na relativa maior, Mi bemol maior. O Largo da Abertura e o Coro inicial são intercalados por um leve Allegro em forma-sonata (Vídeo 02).[17]
Vídeo 02
No século XVIII era amplamente utilizada a chamada Ária da capo, também chamada A-B-A, ou seja, aquela em que há uma seção A, uma seção contrastante B e uma repetição da seção A, tradicionalmente ornamentada para gerar contraste. Haydn não utiliza em “Il ritorno di Tobia” a forma da capo completa, mas encontra-se em duas árias sucessivas (n. 6b, Quando mi dona un cenno, e 7b, Del caro sposo) o dal segno, gerando uma meia-forma da capo, isto é, repete-se somente a segunda metade da seção A. Das onze árias, em oito delas (2b, 3b, 4b, 5b, 11b, 12b, 13b e 14b) Haydn emprega a da capo transformada, A1-B-A2 e, de modo geral, as seções B tendem menos a estabelecer tonalidades do que a mover-se por elas.[18]
14. Pintura de palavras
Usa-se comumente o termo inglês Word-painting para designar os recursos compositivos pelos quais reflete-se em uma música o significado literal da sua letra (ex: escalas ascendentes empregadas no momento em que a letra da música diz “subir”). É algo bastante comum em diferentes épocas e estilos musicais, desde o canto gregoriano até à música mais moderna. Haydn utiliza neste Oratório alguns procedimentos de Word-painting mais detalhados do que o geralmente encontrado em oratórios da época. Isso se verifica, por exemplo, nas chamadas árias de comparação, tais como a n. 2b, Sudò il guerriero. Nessa ária, que possui quatro estrofes ao invés de duas (mais comum), Anna, com raiva, censura Tobit por desperdiçar seu tempo com piedade (que ela considera uma marca de seu orgulho) e lhe diz que a única recompensa é o sofrimento:
Sudò il guerriero, Ma gloria ottenne; | O guerreiro suou, mas obteve glória; |
Tremò il nocchiero, Ma s’arrichì. | O timoneiro tremia, mas ficou rico. |
Geme tal’ora L’agrigoltore; Ma lo ristora La messe un dì. | Às vezes o fazendeiro geme; mas um dia a colheita o recompensará. |
Tu passi gl’anni fra pene e pianti E sono i danni La tua mercè. | Você passa os anos sofrendo e chorando, e os ferimentos são sua recompensa. |
Chiaro si vede Che fra tuoi vanti, Un vero merito Giammai non c’è. | É claro que, com todo o seu orgulho, o verdadeiro mérito nunca é seu. |
Haydn então altera estilos e figuras rítmico-melódicas para interpretar as várias imagens do texto (Vídeo 03):[19]
- há um estilo de marcha para “guerriero” (“guerreiro”) nos versos 1 e 2;
- há trêmulos de semicolcheias nos primeiros violinos nos versos 3 e 4 quando se diz “tremò” (“tremia”);
- representa-se “l’agrigoltore” (“agricultor”) na segunda estrofe por meio de um estilo de música folclórica, popular, cantado por Anna e depois repetido pelo oboé;
- representa-se o sofrimento de Tobit na terceira estrofe (“pene e pianti”, “sofrendo e chorando”) por intervalos cromáticos (modulação para a dominante);
- a palavra “giammai” (“nunca”) da última estrofe é a maior passagem em coloratura de toda a obra.[20]
Vídeo 03
15. Recitativos
Em seu Dictionnaire de musique de 1764, Rosseau (1712-1778) divide os recitativos em três categorias: secco (declamação musical acompanhada por acordes no cravo), accompagné (declamação musical acompanhada por acordes na orquestra) e obligé, que seria aquele em que o cantor e a orquestra estão intimamente ligados, com trechos cantados intercalados por trechos orquestrais, geralmente em momentos em que o personagem agita-se por alguma paixão.[21]
Em “Il ritorno di Tobia”, nota-se a tendência crescente de se aumentar a proporção de recitativos obbligato em relação àqueles em estilo simples (secco). Com efeito, oito dos quatorze recitativos são em estilo obbligato e usam motivos orquestrais para interpretação do texto e para unificação musical. Pode-se citar como exemplo o início da Parte 2, n. 10a, Oh della santa fé stupendi effetti!, em que Anna, Sara e Rafael tratam da esperança de que Tobit recupere a vista em um recitativo longo, introduzido por passagem orquestral. No n. 16, Qui di morir si parla, tem-se um recitativo ainda mais longo, com a participação dos cinco solistas, com toda a orquestra participando (com exceção dos trombones) e com bastante pontuações orquestrais de efeito dramático. No momento em que Azarias revela ser o Anjo Rafael, por exemplo, há uma fanfarra com tímpanos.[22]
16. Coros
Após a estreia de “Il ritorno di Tobia” em 1775, um periódico vienense relatava o sucesso de Haydn e dizia que especialmente seus coros iluminaram com um fogo que não se encontrava senão em Händel, o que indica a boa recepção que os coros de Haydn tiveram junto ao público vienense. Na versão inicial do Oratório, de 1775, há três coros (n. 1, 9 e 17) e neles fica bem claro que há uma retomada do estilo barroco, com especial atenção à pintura das palavras. No n. 1, Pietà d’um infelice, há um equilíbrio entre contraponto com estilo homofônico e declamatório. Os coros n. 9, Odi le nostre voci, e n. 17, Io non oso alzar, encerram-se com fugas longas. Nessas fugas, o sujeito (tema principal que ocorrerá várias vezes durante a composição) começa com uma quarta ascendente, retorna um grau, sobe novamente e retorna em curva melódica (Vídeo 04). Além disso, nas duas fugas a ordem de entrada das vozes é B-T-A-S (Baixo-Tenor-Contralto-Soprano) e próximo ao fim das duas há pontos de pedal e de textura homofônica. Nos três coros de 1775 estão incluídos solistas.
Vídeo 04
Nos coros que Haydn acrescentou em 1784, a saber, o n. 5c, Ah gran Dio, e o n. 13c, Svenisce in un momento, não há fugas, mas ambos utilizam textura imitativa e homofônica. Esses dois números são mais interligados às árias que os precedem.[23]
17. Conclusão
Pode-se considerar “Il ritorno di Tobia” como um importante exemplar do gênero musical Oratório dentro da tradição italiana e especificamente no Barroco tardio. Nele se encontram o tradicional esquema do libreto metastasiano, com sua sucessão de recitativos/árias e sua harmonia de lugar/tempo/ação, além das costumeiras divisões em duas partes e da quantidade padrão de números musicais. Encontra-se também o tradicional virtuosismo vocal italiano em várias árias. A instrumentação, por sua vez, demonstra-se mais rica que o comum da época, possivelmente em razão das circunstâncias favoráveis com que Haydn se deparou para a estreia da obra em Viena. Na escrita coral, Haydn demonstra o domínio das antigas técnicas de contraponto.
Trata-se de uma obra que o próprio Haydn considerava como uma de suas principais e que, no entanto, mesmo em nosso meio musical é pouco conhecida. Aos cantores líricos apresenta a oportunidade de executarem muitas belas árias. Ao público em geral une a beleza musical com um tema edificante e extremamente atual em nossos conturbados dias: a piedade familiar.
Referências
ABBATE, Carolyn; PARKER, Roger. Uma história da Ópera. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
DENT, Edward. Mozart’s Operas: A Critical Study. London: Oxford University Press, 1970.
GROUT, Donald J.; PALISCA, Claude V. História da Música Ocidental. Lisboa: Gradiva, 2007.
HAYDN, Joseph. Il ritorno di Tobia. München: G. Henle Verlag, 2009. Partitura. (616 p.). Orquestra, coro e vozes solistas.
HEUSER, Bruno. História Sagrada: do Antigo e do Novo Testamento. 65 ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
ROSEN, Charles. El estilo clásico. Madrid: Alianza, 2009.
SMITHER, Howard E. A History of the Oratorio. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1977. v. 1: The Oratorio in the Baroque Era: Italy, Vienna, Paris Centuries.
SMITHER, Howard E. A History of the Oratorio. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1987. v. 3: The Oratorio in the Classical Era.
TARAZONA, Andres Ruiz. Joseph Haydn: Viena se encuentra a si misma. Madrid: Real Musical, 1975.
WEBSTER, James. The sublime and the pastoral in The Creation and The Seasons. CLARK, Caryl (Ed.). The Cambridge Companion to Haydn. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. p. 150-163.
+LAUS DEO VIRGINIQUE MATRI+
[1] SMITHER, 1977.
[2] Provavelmente se trata de Karl Joseph Franz Morzin (1717–1783).
[3] “Em 1776 foi solicitado a Haydn que escrevesse um esboço de autobiografia para uma enciclopédia austríaca; o compositor enviou um artigo cheio de modéstia, onde citava como as suas obras que mais êxito haviam conhecido, três óperas, uma oratória italiana (‘O Regresso de Tobias’, 1774-75) e uma versão do ‘Stabat Mater’ – obra que ficou famosa em toda a Europa na década de 1780. Não pareceu a Haydn que valesse a pena referir as cerca de sessenta sinfonias que escrevera até então e, quanto à música de câmara, limitou-se a lamentar que os críticos de Berlim a tivessem por vezes apreciado com excessiva dureza.” (GROUT, Donald J.; PALISCA, Claude V. História da Música Ocidental. Lisboa: Gradiva, 2007. p. 525)
[4] SMITHER, 1987; WEBSTER, 2005.
[5] “O palácio de Esterháza, recém terminado, havia sido construído em estilo renascentista francês sobre um terra pantanosa na qual existia um pequeno pavilhão de caça. O príncipe Nicolás não poupou recursos para fazer dele uma das mais luxuosas residências da Europa. Em seu enorme recinto mandou construir dois teatros: um com capacidade para 500 pessoas sentadas, para oferecer representações operísticas; e outro, também de grande luxo, exclusivamente para marionetes. Luis de Rohan, o embaixador da França, que visitou o palácio de Esterháza em 1772, fez elogios justíssimos de seus maravilhosos jardins, só comparáveis aos de Versalhes. Grutas e bosques, ermidas e templos, um pavilhão destinado especificamente ao cultivo de café, estufas e campos de caça, faziam do palácio um jardim cultivadíssimo em meio a um lugar sombrio e solitário. Este foi o lugar a que Haydn esteve vinculado praticamente durante o resto de sua vida musical. […] Óperas, oratórios, missas, sinfonias, sonatas, quartetos iam sucedendo-se com assombrosa regularidade e com perfeição crescente. A Haydn, tão castigado pela pobreza na juventude, só lhe interessava compor em paz, fazer música, boa música, que enchesse o coração de vivo e simples deleite. ‘Cria uma bela melodia, dizia, e sua composição resultará bela e agradável com toda segurança’.” (TARAZONA, Andres Ruiz. Joseph Haydn: Viena se encuentra a si misma. Madrid: Real Musical, 1975. p. 33-34, tradução nossa)
[6] A data de 1775 é indicada por Charles Rosen como sendo um marco para consolidação do Classicismo como estilo musical: “Por volta de 1775 se aprecia em Haydn e Mozart uma mudança evidente e de grande magnitude; é a data do Concerto para piano em Mi bemol, K. 271, talvez a primeira obra de grandes proporções em que a maturidade do estilo mozartiano se manifesta plenamente ao longo de toda a peça; por esta época, também, Haydn se familiariza plenamente com a tradição da ópera cômica italiana, a que tanto deveria o estilo clássico. A data nada tem de arbitrária: por razões distintas, poderíamos ter eleito outra, cinco ou dez anos antes, mas em meu entender nesta as descontinuidades superam em importâncias as continuidades.” (ROSEN, 2009, p. 27, tradução nossa)
[7] SMITHER, 1987.
[8] Ibidem.
[9] Antonio Domenico Bonaventura Trapassi (1698-1782), conhecido comumente como Pietro Metastasio, foi um poeta e escritor. É considerado o mais respeitado e influente libretista do século XVIII.
[10] SMITHER, 1987.
[11] HEUSER, 2003, p. 119-120.
[12] SMITHER, 1987.
[13] Ibidem.
[14] HAYDN, 2009.
[15] SMITHER, 1987.
[16] Ibidem.
[17] Em síntese, a chamada “forma-sonata” indica uma forma musical em que há uma exposição (temas na tônica e na dominante), um desenvolvimento e uma reexposição (apresentação dos temas da exposição na tônica).
[18] SMITHER, 1987.
[19] Outro exemplo é a ária 12b (“Quel felice nocchier”), em que Tobias vê quase completa sua tarefa de curar os olhos do pai e a compara com o timoneiro que se alegra ao ver o porto ao longe, mas ainda não pode repousar. Haydn coloca música como que de ondas nas cordas e uma série de grandes saltos para o trecho “da lungi scorge il porto” (“de longe vê o porto”). Na ária de Rafael (n. 10b, “Come se a voi parlasse”) ele prediz e descreve o fim dos tempos. Há então uma série de representações musicais para tremores, trevas, estrelas, cadentes, terra desaparecendo, Deus Altíssimo etc. (SMITHER, 1987)
[20] SMITHER, 1987.
[21] DENT, 1975, p. 41-42.
[22] SMITHER, 1987.
[23] Ibidem.