Os Papas e a Música Sacra: a Bula de João XXII (1316-34)

Os Papas e a Música Sacra: a Bula de João XXII (1316-34)

1. Introdução

No presente artigo começarei a tratar sobre os documentos da Santa Igreja referentes à regulamentação da Música Sacra. E o primeiro deles é a Bula Docta Sanctorum Patrum, do Papa João XXII, publicada já no período em que os pontífices romanos residiram em Avignon, no sul da França. Podemos considerar essa Bula como sendo o primeiro documento do Magistério da Igreja destinado a tratar especificamente de aspectos musicais.

Com efeito, no que concerne à documentação eclesiástica, não há, na Antiguidade cristã, muitas menções à questão da música litúrgica. Entretanto, os poucos exemplares que existem são de grande valor histórico, tais como algumas referências à música feitas pelos Papas São Dâmaso (366-384), São Celestino (423-432), São Leão Magno (440-461), São Gelásio (492-496), São Hormisda (514-523) e, sobretudo, São Gregório Magno (590-604), que é considerado o pai do canto litúrgico em razão de sua particular obra em relação à Liturgia e ao canto. Coube a ele, de fato, o papel de recolher, escolher e ordenar os cantos litúrgicos; reformar e aperfeiçoar os cantos já existentes; e, enfim, fundar em Roma a Schola Cantorum [Escola de Música Sacra]. O Papa Leão IV (847-855) também refere-se em carta sua ao trabalho de São Gregório no âmbito da música litúrgica. Algumas atas de Concílios dessa época também denotam a constante preocupação das autoridades da Igreja Católica no sentido de se evitar abusos, de se uniformizar o canto litúrgico ou mesmo de se manter as antigas tradições musicais eclesiásticas.[1]

2. Contexto

Com o advento da polifonia na Idade Média e o desenvolvimento de novas formas musicais, tem-se finalmente a bula Docta Sanctorum, do Papa João XXII (1316-1334), na qual se verifica a preocupação da Igreja em preservar o seu canto litúrgico de determinadas técnicas compositivas que se espalhavam na época, tais como as grandes complexidades rítmicas e o aspecto percussivo no tratamento melódico das vozes.[2] Surgia naquela época uma nova música sacra, com várias vozes e desvinculada do canto gregoriano, no sentido de que não mais empregava o chamado cantus firmus, isto é, um cantochão como base para o processo composicional de uma obra polifônica. A ênfase passa a estar nas vozes contrapontísticas em si mesmas, na sua condução e no efeito tonal.[3]

3. A Ars Nova

As novidades melódicas, rítmicas e harmônicas, surgidas sobretudo no âmbito da música secular, também acabaram influenciando a música litúrgica, tal como se observa nas obras de Philippe de Vitry (1290-1361) e Guillaume de Machaut (+1377), ou na teoria de Jean de Muris (1290-1351) e sua escola. É a essa nova escola musical que Vitry dará o nome de Ars Nova, contrapondo-a, assim, à Ars Antiqua, ao antigo organum ou aos antigos motetos.[4]

Eis algumas características musicais desse novo estilo:

  • novas possibilidades rítmicas pelo uso tanto do tempo ternário como do binário (tempus perfectum e imperfectum);
  • ampliação da concepção harmônica por meio da utilização de semitons;
  • ênfase nas vozes contrapontísticas desenvolvendo-se juntas, rítmica e harmonicamente;
  • desenvolvimento de formas que garantam a unidade musical dentro da textura polifônica: imitação, diminuição, aumentação, cânone etc.;
  • papel mais importante dado à voz superior na textura polifônica;
  • instrumentos musicais contribuindo à harmonização.[5]

4. A Bula Docta Sanctorum Patrum

4.1. Introdução

O Papa João XXII inicia sua bula invocando a autoridades dos antigos Padres e afirmando que o canto sacro deve ser modesto, grave, calmo e pacífico, com a finalidade de, assim, contribuir ao aumento da devoção dos fiéis no culto a Deus:

A competente autoridade dos Padres decretou que, no canto dos ofícios do louvor divino com o qual expressamos a homenagem devida a Deus, devemos ser cautelosos em evitar fazer violência às palavras, devendo, ao contrário, cantar com modéstia e gravidade melodias de caráter calmo e pacífico. Por isso que está escrito: ‘de seus lábios provém sons suaves’ [Primeiro Responsório no Ofício da Dedicação de Igreja]. Ora, os sons são verdadeiramente suaves quando o cantor, enquanto fala com Deus em palavras, também fala com Ele com seu coração e, assim, por meio de sua música, faz crescer a devoção dos demais. É para tal propósito, isto é, para aumentar a devoção dos fiéis, que o canto dos salmos é prescrito na Igreja de Deus; e por esta mesma razão, os ofícios do dia e da noite, assim como a celebração da Missa, são cantados pelo clero e pelo povo com melodias graves ainda que diversificadas, e, assim enquanto somos deleitados por tal diversidade, ficamos admirados por sua gravidade.[6]

4.2. Aspectos musicais

Em seguida, o documento faz menção inequívoca a um determinado tipo de música produzido em sua época e critica-o, considerando-o impróprio à Liturgia. Trata-se de alguns procedimentos compositivos que se desenvolveram na Ars Nova: complexidade rítmica, alternância da linha melódica entre as diferentes vozes (hoquetus – Figura 1), introdução de textos em vernáculo dentro do tecido polifônico e desprezo pelas antigas melodias gregorianas:

Mas certos expoentes de uma nova escola, que pensam somente nas leis do tempo estritamente mensurado, estão compondo novas melodias de sua própria criação com um novo sistema de notas, e preferem estas àquela música antiga e tradicional; as melodias da Igreja são cantadas em ‘semibreves’ e ‘mínimas’ e com notas ornamentais de repercussão. Por alguns, as melodias são quebradas por ‘hochetis’ ou perdem sua virilidade por ‘discanti’ [duas vozes], ‘triplis’ [três vozes], ‘motectis’, com um elemento perigoso produzido por certas vozes cantadas com textos em vernáculo; todos estes abusos ignoram as melodias fundamentais do Antifonário e do Graduale; tais compositores, nada sabendo sobre as verdadeiras fundações sobre as quais devem construir, são ignorantes sobre os Modos, incapazes de distinguir entre eles, e causam grande confusão. O mero número de notas, em tais composições, esconde de nós a melodia do cantochão, com seus movimentos ascendentes e descendentes simples e bem regulados que indicam o caráter do Modo. Estes músicos correm sem descanso, intoxicam o ouvido sem satisfazê-lo, dramatizam o texto com gestos e, ao invés de promover a devoção, eles a impedem, criando uma atmosfera sensual e indecente. Assim, não é sem boa razão que disse Boécio: “Uma pessoa que é intrinsecamente sensual irá se deleitar em ouvir estas melodias indecentes, e aquele que as ouve frequentemente será, então, enfraquecido e perderá sua virilidade de alma.”[7]

Figura 1 – Exemplo de hoquetus em uma peça musical do século XIV (FONTE: FELLERER, 1979, p. 63)

4.3. Regulamentação

Finalmente, o Papa proíbe tal tipo de música nas funções litúrgicas, determina sanções aos que descrumprirem suas determinações e, enfim, esclarece que não tem a intenção de proibir a polifonia, apenas exige que ela seja simples, apropriada às melodias do antigo cantochão e consequentemente mantenham o caráter grave e modesto da música propriamente litúrgica:

Consequentemente Nós e Nossos irmãos [os Cardeais] percebemos há tempos que este estado de coisas exige correção; e agora Nós estamos preparados para tomar ações efetivas a fim de proibir, expulsar e banir tais coisas da Igreja de Deus.

Assim sendo, depois de consulta feita a estes mesmos Irmãos [os Cardeais], Nós proibimos absolutamente para o futuro que alguém deva fazer tais coisas, ou outras de igual natureza, durante o Ofício divino ou durante o Santo Sacrifício da Missa. Se alguém vier a desobedecer, por autoridade desta lei ele será punido com suspensão de seu ofício durante oito dias, tal punição sendo aplicada pelo Ordinário local no lugar em que a falta for cometida, ou por seu delegado, no caso de pessoas que não estão isentas da autoridade do Ordinário local; para aqueles que são isentos, a punição deverá ser aplicada pelo seu Prelado ou Superior Religioso cujo dever é corrigir abusos, punir faltas e excessos, ou por seu delegado.

Entretanto, Nós não temos a intenção de proibir o uso ocasional – principalmente em festas solenes na Missa e no Ofício divino – de certos intervalos consonantes superpostos sobre o canto eclesiástico simples, contanto que tais harmonias tenham o espírito e caráter das próprias melodias, tais como, por exemplo, a consonância de oitava, de quinta, de quarta, e outras desta natureza; mas sempre com a condição de que as melodias em si mesmas permaneçam intactas na pura integridade de sua forma, e de que inovação alguma tome lugar contra a verdadeira disciplina musical; pois tais consonâncias são agradáveis ao ouvido e promovem a devoção, e elas previnem o torpor naqueles que cantam em honra de Deus.

Dado e promulgado em Avignon no Nono Ano de Nosso Pontificado (1324-1325).[8]

5. Considerações finais

Segundo Fubini, a Ars Nova do século XIV não representou somente o surgimento de um novo estilo musical, mas sim uma completa revolução no contexto da cultura musical. Foi o momento em que nasceram as primeiras polêmicas dentro do mundo dos teóricos da Música e a Bula de João XXII é um testemunho eloquente dos conflitos que surgiam entre dois modos distintos de conceber a música. De um lado, a simplicidade, a claridade e o papel da música como instrumento de edificação religiosa, isto é, não como instrumento de puro deleite, mas como meio de se elevar até Deus. De outro lado, a prolixidade, a novidade gratuita e a ideia da música como fim em si mesma, isto é, independente no que se refere a seu valor puramente auditivo. É o conflito entre as concepções autônoma e heterônoma da Música. Segundo o mesmo Fubini, esse conflito levará depois a que as “razões” da música tornem-se com o tempo cada vez mais preponderantes e se afirmem cada vez, prescindindo de motivações ou justificativas de tipo teológico, cosmológico ou moralista. Por outro lado, a concepção heterônoma da música permanecerá também, não tanto sob a forma de teorias de caráter abstrato, como em termos de controle prático da produção musical, a qual tendia então a se afastar do campo de ação da Igreja.[9]

Referências

FELLERER, K. G. The History of Catholic Church Music. Westport: Greenwood Press, 1979.

FUBINI, E. La estética musical desde la Antiguedad hasta el siglo XX. Madrid: Alianza, 2007.

ROMITA, F. Jus Musicae Liturgicae: Dissertatio historico-iuridica. Roma: Edizioni Liturgiche, 1947.

ROSE, M. Canto gregoriano: método de Solesmes. Rio de Janeiro, 1963.

THE WHITE LIST of the Society of St. Gregory of America: with a selection of Papal Documents and other information pertaining to Catholic Church Music. New York: The Music Committee of the Society, 1954.

+LAUS DEO VIRGINIQUE MATRI+


[1] ROMITA, 1947, p. 28-35; ROSE, 1963, p. 193.

[2] ROMITA, 1947, p. 47-51.

[3] FELLERER, 1979, p. 63.

[4] FELLERER, 1979, p. 64.

[5] SMITHER, 1979, p. 64-65.

[6] Apud ROMITA, 1947, p. 47-48; THE WHITE LIST…, 1954, p. 3, tradução minha.

[7] Ibidem.

[8] Ibidem.

[9] FUBINI, 2007, p. 123-125.

Prof. Thiago Plaça Teixeira

O Professor Thiago Plaça Teixeira é Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Paraná, Bacharel em Piano pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná, Mestre e Doutor em Música pela Universidade Federal do Paraná. Foi premiado em concursos de piano e atuou com diversos instrumentistas, cantores e grupos corais em concertos, óperas, festivais e séries de música de câmara. Trabalhou em instituições de ensino superior no Paraná ministrando disciplinas teóricas e práticas. Como pesquisador, direciona seus estudos à música sacra católica, área em que também tem experiência prática atuando como organista.

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