Recital didático: Reminiscências de “Norma”
Introdução
Durante o século XIX difundiu-se no meio musical europeu a publicação de transcrições e paráfrases para piano sobre temas de óperas. Dessa forma, trechos célebres de grandes óperas francesas e italianas difundiram-se em espaços públicos e privados, rompendo os limites do palco teatral. Esse tipo de repertório para piano consistia geralmente em uma simples justaposição com fins virtuosísticos dos principais temas de uma determinada ópera.
Liszt e as Paráfrases
Franz Liszt (1811-1886), considerado o maior pianista de todos os tempos, escreveu várias dessas transcrições e paráfrases operísticas para piano. Mas diferentemente de seus contemporâneos, Liszt não produzia simples coleções de temas e sim obras de concerto de elevada qualidade musical.
Destacava-se por sua capacidade de capturar o conteúdo dramático essencial das óperas originais, recriando-as com grande inventividade.
“As mais refinadas fantasias operísticas [de Liszt] … justapõem diferentes partes da ópera, de modo que apresentam um novo significado, enquanto que o sentido dramático do número individual e seu lugar dentro da ópera nunca é perdido de vista.” [1] (Charles Rosen)
“Nos casos mais inspirados, a forma e o conteúdo da ópera escolhida determinam uma interpretação pessoal do tema, em dez ou quinze minutos de música que nunca descem ao nível do mero pot-pourri. É bem conhecido o envolvimento de Liszt com a ópera e seu desenvolvimento no século XIX. Nessas fantasias encontra-se o legado operístico de um homem que conheceu todos os compositores de ópera importantes do período compreendido entre as décadas de 1820 e 1880.” [2] (Derek Watson)
“Quem quer que deseje saber realmente o que Liszt representou para o piano deve estudar suas velhas fantasias sobre temas de óperas. Elas representam o classicismo da técnica pianística.” [3] (Johannes Brahms)
No vídeo abaixo apresento ao piano uma das fantasias operísticas de Liszt comumente considerada como uma de suas melhores: Réminiscences de “Norma”. É baseada em temas da Ópera “Norma” de Vincenzo Bellini (1801-1835), estreada no Teatro alla Scala, de Milão, no dia 26 de dezembro de 1831.
Ópera “Norma” de Bellini
A Ópera tem libreto de Felice Romani (1788-1865) e conta a história de um amor proibido entre Norma, uma sacerdotisa druida, e Pollione, o procônsul romano. A ação se passa em meados do século I a.C. na Gália, ocupada pelas tropas romanas. Norma teve em segredo dois filhos de Pollione, violando assim seus votos de sacerdotisa druida. Pollione a abandona e se envolve com Adalgisa, uma outra sacerdotisa que ele pretende levar consigo para Roma. Norma cogita matar os dois filhos para punir Pollione, mas desiste e, quando ele é preso pelos gauleses, confessa-se culpada diante de todos e resolve se sacrificar e morrer junto do antigo amante.
A Ópera “Norma” tornou-se a obra mais popular de Bellini, mantendo-se até hoje na programação das grandes casas de ópera e no repertório de célebres cantores líricos.
Fantasia de Liszt sobre “Norma”
“Os acordes iniciais em sol menor (extraídos do coro ‘Norma viene’, criando uma sensação de expectativa), a bela e expansiva melodia em sol maior que se segue (‘Ite sul colle, O Druidi!’ – a exortação do druida Oroveso para que seu povo se insurja contra os invasores romanos) e a marcha ‘allegro deciso’ (do coro marcial ‘Dell’aura tua profetica’) evocam magnificamente as cenas iniciais da ópera, com os druidas e os soldados da Gália. O animado tema ‘allegro’ passa por uma série de variações brilhantes, até que o material da introdução retorna na tonalidade dramaticamente intensificada de sol sustenido menor. Com a passagem em recitativo livre e a modulação para si menor, Liszt introduz passagens da cena final da ópera, associadas ao destino de Norma, a sua coragem e compaixão. Inicialmente, ‘Deh! non volerli vittime’, e logo, na maravilhosa modulação para si maior, o dueto ‘Qual cor tradisti’. Toda essa passagem em si maior, extraordinariamente comovente, levou Busoni a comentar que aquele que a ouvir e não se sentir tocado ‘ainda não alcançou Liszt’. Ela é coroada pela melodia de ‘Padre, tu piangi?’. A indicação ‘tempestuoso’ introduz a música do anúncio, por Norma, de que os deuses determinaram a guerra contra os romanos (‘Guerra! Guerra’), e a fantasia chega ao clímax com o retorno de ‘Padre, tu piangi?’, habilmente associada a certa altura à melodia de ‘Dell’aura tua profetica’. Com uma derradeira evocação de ‘Guerra! Guerra!’, chegam a um fim emocionante essas ‘réminiscences’ de aproximadamente 15 minutos.” [4] (Derek Watson)
A obra Réminiscences de Norma, de Liszt, foi gravada para o presente vídeo no dia 19/10/21 no SESC Paço da Liberdade (Curitiba/PR).
Notas:
[1] ROSEN, Charles. The Romantic Generation. Cambridge: Harvard University Press, 1995. p. 528, tradução nossa.
[2] WATSON, Derek. Liszt. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994. p. 171.
[3] Apud WATSON, Derek. Liszt. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994. p. 170.
[4] WATSON, Derek. Liszt. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994, p. 174-176.