“Vere languores nostros” de Victoria
Aproveitando o tempo da Semana Santa apresentamos este pequeno texto sobre o moteto “Vere languores nostros”, umas das obras mais conhecidas e executadas do grande compositor espanhol Tomás Luis de Victoria (1548-1611).
Tomás Luis de Victoria
“Victoria não é somente um músico, mas um pensador penetrado de doutrinas medievais, e um crente de um excepcional rigor ortodoxo. Este caráter tão original nós o encontramos novamente na sua obra, sem dúvida uma das mais claramente expressivas que existem.” [1]
Tomás Luis de Victoria nasceu no ano de 1548 em Ávila (Espanha), onde provavelmente conheceu Santa Teresa (1515-1582). Passou cerca de trinta anos vivendo em Roma, onde fez seus estudos musicais e também teológicos, vindo a ser ordenado sacerdote católico em 1575. Lá também foi mestre de capela no Collegium Germanicum e capelão na Igreja de S. Girolamo della Carità, tendo contato então com S. Filipe Neri (1515-1595). Em 1596 regressa definitivamente à Espanha, sendo nomeado cantor e organista do convento das Descalzas Reales de Madrid, para onde havia se retirado a Imperatriz Maria (irmã do Rei Felipe II). É também aí que Victoria morreu e foi sepultado. [2]
A obra de Victoria
Todas as composições de Victoria são religiosas. Nunca escreveu madrigais ou canzonette e também nunca utilizou temas profanos em suas missas polifônicas, nas quais empregou somente motivos tirados de seus próprios motetos ou de cantos gregorianos. Compôs vinte Missas (entre 4 e 12 vozes), quarenta e seis motetos (entre 4 e 8 vozes), trinta e cinco hinos, Litaniae de Beata Vergine, salmos, antífonas a Nossa Senhora, cânticos, Officium Defunctorum e o Officium Hebdomadae Sanctae. [3]
“Tendo vivido em Roma durante muito tempo, sofreu a influência de Palestrina e exerceu também uma certa influência neste. Mas distingue-se dele e dos outros músicos da escola romana, devido, sobretudo, a um imenso lirismo místico, especificamente espanhol. Mais sincero e mais austero do que Palestrina, não utiliza nunca inutilmente a sua habilidade no manejo do contraponto vocal. Subordina sempre a escrita à expressão e não teme os cromatismos ou os encontros dissonantes, completamente desusados nos músicos da escola romana.” [4]
Misticismo musical
Por ter sido Victoria um contemporâneo no século XVI de grandes santos e místicos espanhóis, tais como Santa Teresa d’Ávila e São João da Cruz (1542-1591), sua música é muitas vezes entendida como uma manifestação sonora de muitos aspectos da espiritualidade de sua terra natal.
De fato, a profunda piedade católica do povo espanhol, juntamente com seu temperamento potente e enérgico, levaram a que as belas-artes fossem colocadas profundamente a serviço da Religião. E na época de Victoria (o século XVI, chamado de Século de Ouro), ao mesmo tempo em que se tem o ponto alto da mística cristã, também se tem como que a Fé encarnada em formas estéticas da arte espanhola. [5]
“A originalidade destas obras litúrgicas não está na forma musical, mas na emoção sentimental mística que inflama e transfigura a matéria musical que serve para comentar o texto sagrado”. [6]
Em termos musicais, esse caráter “místico” da música de Victoria parece estar conectado diretamente a uma grande expressividade. O tradicional contraponto da época é empregado não como um fim em si mesmo ou por mero formalismo estético, mas sim como um verdadeiro meio de expressão. Principalmente na música feita para os Ofícios da Semana Santa, esse estilo original de Victoria fica manifesto no modo como trata os textos referentes à Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo. Aí também se manifesta uma conexão com o misticismo de Santa Teresa, o qual tinha como um de seus traços característicos o ardente desejo de participar na Paixão e de sofrer com o Redentor. [7]
O moteto “Vere languores nostros”
Em 1572 Victoria publica seu primeiro livro de motetos. Trata-se de uma coleção de peças sacras corais contendo quatorze obras a quatro vozes; nove a cinco vozes; nove a seis vozes; e uma a oito vozes. Os motetos destinam-se às principais festas litúrgicas do ano eclesiástico. [8]
Para o tempo da Paixão, mais especificamente para a Quinta-feira Santa, Victoria indica o moteto “Vere languores nostros” (partitura disponível aqui). Seu texto tem como fontes um responsório da terceira lição de Matinas desse dia, assim como também trechos da Festa da Santa Cruz (antífonas do Noturno de Matinas e do Magnificat das Segundas Vésperas) conforme alguns usos litúrgicos espanhóis da época. [9]
Vere languores nostros ipse tulit, et dolores nostros ipse portavit; cuius livore sanati sumus. Dulce lignum, dulces clavos, dulcia ferens pondera, quae sola fuisti digna sustinere regem caelorum et dominum. | Em verdade, ele tomou sobre si as nossas enfermidades e carregou os nossos sofrimentos; fomos curados com o sangue das suas chagas. Doce lenho, doces pregos e doce peso que hás sustentado, foste o único digno de sustentar o Rei e Senhor dos céus. |
Estrutura musical do moteto
“O Vere languores nostros da Feria quinta in Coena Domini começa com acordes tristes e lentos, índices do abatimento profundo de Cristo”: [10]
Neste primeiro trecho, entre os compassos 1 a 5 (texto “Vere languores nostros”) tem-se como abertura do moteto uma primeira frase homorrítmica em longas notas, com pouca mobilidade melódica. Harmonicamente, encaminha-se da tônica (Lá menor) para a dominante (Mi maior), com destaque para o movimento frígio em semitom no baixo (Fá-Mi nos compassos 4-5). A frase seguinte, compassos 5 a 8 (texto “ipse tulit”), apresenta função cadencial, retornando ao acorde de Lá menor em uma textura ainda homorrítmica, mas com maior mobilidade. [11]
Entre os compassos 8 a 11 (texto “et dolores nostros”) permanece a textura homorrítmica, mas as sílabas do texto passam a corresponder a mínimas (e não a semibreves, como na frase anterior). A voz de soprano atinge uma nota mais aguda, juntamente com maior movimentação rítmica do tenor, indicando uma certa intensificação expressiva. Harmonicamente, mantém-se a frase em Lá menor, retomando-se o semitom frígio do trecho anterior. Entre os compassos 11 a 15 o mesmo texto “et dolores nostros” é declamado pela voz de soprano um tom acima do trecho anterior, denotando aumento de tensão.
Na frase seguinte, compassos 14 e 19 (texto “ipse portavit”), tem-se uma textura imitativa com um motivo melódico em intervalos descendentes. Essa mudança de textura (da homofônica para a contrapontística) parece ter a função de resolver a tensão melódica acumulada nas frases anteriores e ao mesmo tempo também enfatizar o texto declamado. O trecho conduz ao acorde da dominante, Mi maior, sendo seguido por uma longa pausa que encerra a primeira seção do moteto.
“Mas estes sofrimentos redimiram o mundo, e duas cadências triunfais e alegres anunciam a redenção”:[12]
O segundo segmento do moteto, entre compassos 20 e 28 (texto “cujus livore sanati sumus”), é formado basicamente por duas frases simétricas. Cada uma delas apresenta uma estrutura de abertura-fechamento em termos harmônicos: dois compassos encaminhando-se para o acorde de dominante (Mi maior) e dois compassos retornando à tônica, Lá menor. Mantém-se a textura totalmente homorrítmica. Há ainda um certo colorido harmônico na rápida passagem do acorde de Mi maior para Dó maior, compassos 22 e 26.
“Em seguida, um silêncio recolhido precede um período de efusão e de piedade agradecidas; as notas ligam-se lentamente, a melodia se acalma: dulce lignum, dulces clavos, ela murmura, comovida e consoladora”: [13]
A terceira parte do moteto, entre compassos 29 a 39, corresponde ao texto “Dulce lignum, dulces clavos, dulcia ferens pondera”, em que há referência direta aos instrumentos do sofrimento de Cristo: o madeiro da Cruz e os cravos. Em “dulce lignum” o ritmo se torna mais lento, com um perfil melódico descendente (Sol-Fá-Mi) e acordes menores (Mi menor, Ré menor e Lá menor). O âmbito melódico também se torna mais grave que o segmento anterior. Em “dulces clavos” tem-se um movimento melódico em semitom, um ritmo declamatório mais agitado e a cadência em Dó maior. Em “dulcia ferens pondera”, enfim, retoma-se o movimento melódico descendente de Sol-Fá-Mi e cadencia-se em Lá maior.
“O Baixo continua sozinho, em seguida o Tenor o responde; o Soprano se une ao conjunto e conduz o Contralto. Assim, cada um saúda a Cruz divina”: [14]
A partir do compasso 39 inicia-se a quarta e última seção do moteto. Até o compasso 52 tem-se o texto “quae sola fuisti digna”, em que a textura musical passa a ser amplamente contrapontística, com repetições do texto e o movimento de imitação iniciando-se com as vozes mais graves. Cadencia-se em Lá. Entre os compassos 52 e 59 (texto “sustinere Regem caelorum”) retoma-se a homofonia e chega-se à dominante, Mi maior.
“Uma bela marcha de terças e sextas destaca et dominum, e eleva todas as vozes para as deixar baixar até ao sussurro da oração e à calma da adoração. Esta coda, digamos assim, é verdadeiramente moderna, e forma como que um desenvolvimento sinfônico, onde as vozes, ricamente distribuídas, são tratadas como atualmente, isto é, como instrumentos.” [15]
Entre os compassos 59-68 (texto “et Dominum”) há um trecho em contraponto livre. Tenor e Baixo, ao qual se junta em seguida o Contralto, apresentam escalas descendentes paralelas, enquanto que o Soprano inicia em seu âmbito mais agudo um movimento melódico também descendente. Cadencia-se em Lá maior.
Conclusões
Nessas breves considerações pode-se ter um primeiro contato com os traços mais característicos da arte musical de Tomás Luis de Victoria. Temos, em primeiro lugar, a pura harmonia sonora como efeito da antiga arte do Contraponto, em que as diferentes vozes entrelaçam-se de forma lógica e deleitosa em razão do sábio manejo das relações de consonância e dissonância. Em segundo lugar temos a variedade de estilos sonoros que o compositor utiliza na estruturação da obra: a pura homofonia, o contraponto livre ou o estilo imitativo estrito. Em terceiro lugar, temos a perfeita adesão da música ao texto religioso. [16]
Perfis melódicos descendentes, alterações no ritmo, pausas gerais, acordes menores etc. são alguns dos vários procedimentos compositivos que Victoria utiliza para dar verdadeira expressão ao texto e, assim, de certa forma tornar a música um meio que favoreça a meditação dos fiéis nos sofrimentos de nosso Redentor em sua Paixão.
+LAUS DEO VIRGINIQUE MATRI+
Referências
CANDÉ, Roland. Os músicos: a vida, a obra, os estilos. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1985.
COLLET, H. Le mysticisme musical espagnol au XVI siècle. Paris: Librairie Félix Alcan, 1913.
FILIPPI, Daniele V. Sonic styles in the music of Victoria. Revista de Musicología, Madrid, n.35, p.155-182, n.1, 2012.
GIARDINA, Adriano. Tomás Luis de Victoria: le premier livre de motets, organisation et style. v. 1. 344f. Tese (Doutorado em Letras) – Faculte dês Lettres, Universite de Geneve, 2009a.
GIARDINA, Adriano. Tomás Luis de Victoria: le premier livre de motets, organisation et style. v. 3. 385f. Tese (Doutorado em Letras) – Faculte dês Lettres, Universite de Geneve, 2009b.
HERNÁNDEZ, Gonzalo Castrillo. Discurso para la inauguración del año acadêmico cultural “Tello Tellez” (1955-1956). Disponível em: El misticismo musical del Siglo de Oro en el arte español – Dialnet (unirioja.es) Acesso em: 15/04/2022.
MENÉNDEZ-PELAYO, Marcelino. Historia de las ideas estéticas em España. v.2: siglos XVI e XVII. Buenos Aires: Espasa-Calpe Argentina, 1943.
STEVENSON, Robert. La música en las catedrales españolas del Siglo de Oro. Madrid: Alianza, 1993.
Notas:
[1] COLLET, 1913, p. 403, tradução nossa.
[2] CANDÈ, 1985, p. 220.
[3] CANDÈ, 1985, p. 220-221.
[4] CANDÈ, 1985, p. 220.
[5] Cf. HERNÁNEZ, 1955.
[6] HERNÁNDEZ, 1955, p. 29, tradução nossa.
[7] Cf. STEVENSON, 1993, p. 493-494.
[8] Cf. GIARDINA, 2009a.
[9] GIARDINA, 2009a, p. 80; 2009b, p. 35.
[10] COLLET, 1913, p. 417.
[11] Para as descrições analíticas do moteto seguimos FILIPPI, 2012, p. 169-180.
[12] COLLET, 1913, p. 417.
[13] Ibidem.
[14] Ibidem.
[15] Ibidem.
[16] “Texto e música são duas formas de linguagem que se interpenetram de tal modo que formam uma só entidade expressiva. A música penetra na palavra e a eleva ao alto. A palavra dá um sentido preciso à música e a projeta sobre a realidade concreta.” (QUINTÁS, 2021, p. 310, tradução nossa)