Fantasia para piano de S. Thalberg sobre “La Sonnambula”

Fantasia para piano de S. Thalberg sobre “La Sonnambula”

Em dois artigos anteriores, tratei das paráfrases pianísticas sobre temas de ópera e especificamente sobre as que Józef Wieniawski (1837-1912) e Franz Liszt (1811-1886) compuseram sobre La Sonnambula, de Vincenzo Bellini (1801-1835). No presente artigo abordarei uma outra fantasia para piano também escrita sobre a mesma Ópera. Trata-se do Grande Caprice sur des motifs de l’opera ‘La Sonnambula’ (Bellini), Op. 46, composta por Sigismund Thalberg (1812-1871). Disponibilizamos aqui no site a partitura dela:

1. QUEM FOI THALBERG

Infância e juventude

Thalberg nasceu em Pâquis, próximo a Genebra (Suiça), em 8 de janeiro de 1812. Foi filho ilegítimo do Príncipe Moritz Dietrichstein-Proskau-Leslie (1767-1854) com a Baronesa Julie d’Eyb Bidescuty Wetzlar (n.d.). De qualquer forma, seu registro de nascimento apresenta como seus pais: Joseph Thalberg, de Frankfurt, e Fortuné Steins, residente em Genebra. [1]

Entre os seis e os quatorze anos, Thalberg recebeu formação musical de August Mittag (1795-1867), professor no Conservatório de Viena, e de Simon Sechter (1788-1867). No piano, seu primeiro mestre foi Johann Nepomuk Hummel (1778-1837). Por volta dos treze anos de idade, Thalberg iniciou seus recitais em residências de famílias nobres vienenses, começando a atingir certa fama. Apesar de suas grandes habilidades, Thalberg não teve a exposição própria dos meninos-prodígio da época. Teve tempo e condições favoráveis para receber uma educação mais ampla, própria da sua condição aristocrática. Em 1826, Thalberg vai a Londres, onde faz aulas de piano com Ignaz Moscheles (1794-1870). A maioria de suas performances nessa época eram resultados das viagens diplomáticas do Conde Dietrichstein, seu pai. [2]

A carreira de pianista

Na década de 1830, Thalberg viaja e se apresenta por vários locais da Europa, sendo aclamado como virtuose do piano. Recebeu do Imperador da Áustria o título de Kammervirtuoso (músico de câmara da corte). Em 1835, ele chega a Paris, onde fará aulas de piano com Friedrich Kalkbrenner (1785-1849) e Johann Peter Pixis (1788-1874). Tendo feito suas primeiras apresentações na capital francesa, é muito bem estimado pelo público e pela crítica, tal como se depreende deste registro do jornal Le Ménestrel (13 de março de 1836): [3]

Mosheles, Kalkbrenner, Chopin, Liszt e Herz são e sempre serão para mim grandes artistas, mas Thalberg é o criador de uma nova arte que eu não sei como comparar com qualquer outra coisa que existiu antes dele … Thalberg é não somente o maior pianista do mundo, mas também um compositor extremamente distinto. [4]

Em 1837 houve um famoso episódio de rivalidade entre Thalberg e Liszt em Paris, ocasionando certos partidarismos entre os grandes virtuoses do piano. Entre 1836 e 1865, Thalberg fará sua grande carreira de quase trinta anos consecutivos como pianista virtuose por diversos países, tanto na Europa como também na América. Em 1843 Thalberg se casa com Francesca Lablache (1816), viúva do pintor francês François Bouchot (1800-1842) e filha do famoso cantor de ópera, Luigi Lablache (1794-1858). [5]

A América e o retorno à Europa

Em 1855, Thalberg passa a primeira parte do ano em Nápoles e Viena, seguindo depois para uma turnê que incluirá Rio de Janeiro e Buenos Aires. No final de 1856, ele se dirige à América do Norte, onde, na época, era muito rentável aos virtuoses europeus realizarem concertos. Em duas temporadas (1857-58), Thalberg chegou a se apresentar 340 vezes nos EUA e no Canadá, acumulando uma grande quantia em dinheiro.

Voltando à Europa, Thalberg ficaria quatro anos sem se apresentar publicamente (1858-1862), retomando na sequência seus concertos, ao menos em grandes centros urbanos. Em 1864, Thalberg se retira definitivamente dos palcos, estabelecendo-se em uma residência sua em Posillipo, próximo a Nápoles, onde se dedicará ainda ao ensino musical. Thalberg morreu em 27 de abril de 1871. [6]

Estátua de Thalberg em Nápoles (Itália)

Thalberg no Brasil

Primeiro concerto

No ano de 1855 a vinda de Thalberg ao Brasil representou grande movimentação na vida musical da então Capital do Império. Ele chegou ao Rio de Janeiro em 10 de julho de 1855, dando seu primeiro concerto em 25 de julho, no Teatro Lírico Fluminense. O programa (Figura 01), adequado ao gosto da época, misturava números orquestrais, instrumentais e vocais. Uma das peças que Thalberg interpretou ao piano foi sua Fantasia sobre motivos da ópera La sonnambula, de Bellini, justamente a peça que nos propomos a abordar no presente artigo. Além dela, também tocou sua Fantasia sobre motivos da ópera La muette de Portici de Auber; seu Estudo em lá menor; e suas Variações sobre a barcarola da ópera L’elisir d’amore, de Donizetti. [7]

Figura 01: Programa do primeiro concerto de Thalberg no Rio de Janeiro. Fonte: Jornal do Commercio, 24 jul. 1855.

Segundo e terceiro concertos

No segundo concerto, a 03 de agosto, no mesmo local, Thalberg executou sua Fantasia sobre Moisés no Egito, de Rossini; suas Variações sobre motivos da ópera Norma, de Bellini; suas Variações sobre o final do Ato 2 de Lucia di Lammermoor, de Donizetti; e seu Grande capricho sobre motivos da ópera Lucrezia Borgia, de Donizetti.  No terceiro concerto, a 18 de agosto também no Teatro Lírico, interpretou sua Fantasia sobre a ópera Semiramide, de Rossini; o Andante cantabile, seguido da Serenata, ambos da ópera Don Pasquale, de Donizetti; sua Tarantela napolitana; e suas Grandes variações sobre a barcarola da ópera L’elisir d’amore, de Donizetti. [8]

Quarto, quinto e último concertos

No quarto concerto (em benefício do recolhimento de Santa Teresa), a 26 de setembro no mesmo local, interpretou sua Fantasia sobre motivos da ópera Les huguenots, de Meyerbeer; sua Fantasia sobre motivos de Moisés no Egito, de Rossini; sua Barcarola e Grande fantasia sobre motivos de Lucrezia Borgia, de Donizetti. No quinto concerto, promovido pela Sängerbund (sociedade coral alemã sediada no Rio de Janeiro), a 03 de outubro também no Teatro Lírico, Thalberg tocou suas Variações sobre temas de Don Giovanni de Mozart; e a sua Grande Fantasia sobre motivos da Norma de Bellini, a dois pianos com um outro pianista (Prof. Weiss). No sexto e último concerto de Thalberg no Rio de Janeiro, a 14 de dezembro no Teatro S. Pedro de Alcântara, ele tocou seu Estudo em lá menor e uma peça a dois pianos com o pianista Achille Arnaud (provavelmente a Fantasia a dois pianos sobre a ópera Norma, de Bellini). [9]

Repercussão na imprensa

A performance de Thalberg causou grande furor no público em geral do Rio de Janeiro, conforme bem documentado em vários trechos de crônicas e folhetins dos jornais, publicados por ocasião dos concertos. Eis alguns exemplos:

a) Jornal do Commercio

Na terça-feira teve o distinto Sr. Thalberg, a honra de ser apresentado a Suas Majestades no paço de S. Christovão, onde pela primeira vez se fez ouvir, a convite de S. M. o Imperador, com grande admiração e aplausos. O Imperador o honrou com uma conversação que o entreteve por espaço de três horas sucessivas; o que prova bem que o insigne artista soube prender a atenção do Seu Augusto interlocutor com a extrema amabilidade e pouco vulgar instrução de que consta ser ele dotado. [10]

b) Marmota Fluminense

Fomos ao teatro lírico, ao primeiro concerto do afamado Artista o Sr. Sugismund Thalberg. Vimos e ouvimos; mas do que ouvimos e vimos não podemos dar aos leitores mais do que uma sucinta ideia.
O Sr. Thalberg, na nossa opinião, é um Gênio; o que ele faz é um prodígio na arte musical!
Perfeito cavalheiro, de elegantíssima presença, e civil à toda prova, o Sr. Thalberg senta-se ao piano e faz que seus dedos corram pelo teclado com mais ligeireza, não dizemos bem, com mais rapidez do que qualquer de nós o pode fazer trinando com a língua nos dentes! […] Em tudo o que tocou, e tocou sem música, porque o Sr. Thalberg, como o poeta Gonzaga “não canta letra que não seja sua” e sendo assim Maestro, como é, toca o que quer, porque faz do teclado do piano o que lhe parece; o inimitável Artista esteve sublime; porém o que mais arrebatou o seu auditório foi a última peça – variações sobre a barcarola do “Elixir d’Amor”!
O Sr. Thalberg, depois de tocar o motivo de Donizetti, entrou em variações, fazendo baixo com a mão esquerda, e com a direita discorrendo tanto quanto era possível poder-se fazer; mas o que admira é, que estando assim as duas mãos ocupadas, havia uma como “terceira mão”, que tocava sempre o mesmo motivo, e tocava-o de modo, que fazia sobressair essas notas a todas as outras notas do acompanhamento e das variações fantasiadas, e isto, variando sempre de tom, ou antes em todos os tons do instrumento, de que pode tirar recursos o portentoso Maestro!
Isto que dizemos é coisa que por mais explicada que seja não se pode bem compreender, e foi talvez por um caso destes, que disse S. Tomé “ver para crer!”
Pedimos a todas as pessoas de gosto, que façam o que puderem para apreciar, ao menos uma vez, esse prodígio da arte. Ligando à ciência musical a perfeita execução artística, o inspirado pianista tira desta dificílima combinação, de compositor e executor, um partido o mais extraordinário que se pode imaginar, de modo que o piano em suas mãos canta “del canto, che nell’anima si sente”.
[11]

c) L’iride Italiana:

Dificilmente o Brasil poderá vangloriar-se de possuir sob seu belo céu uma celebridade artística que ao menos o imite. A saudade de Thalberg durará até os mais remotos descendentes daqueles que tiveram a fortuna de assistir a algum de seus concertos. [12]

2. A MÚSICA DE THALBERG

A principal contribuição de Thalberg para o avanço da arte musical parece ter sido como um expoente das possibilidades técnicas do piano antes não imaginadas. Ele não apenas possuía o domínio do toque em um grau transcendente e se destacava no “sostenuto” tocando com o uso do pedal, mas também descobriu um método de fazer duas mãos produzirem o triplo efeito de melodia, acompanhamento e baixo em um teclado – um recurso explorado por muitos compositores depois dele. Suas composições, cerca de 100, incluem duas óperas, “Florinda” e “Christina di Suezia”, ambas importantes apenas para demonstrar sua inadequação para este campo da arte. Ele compôs com sucesso apenas para o instrumento do qual era um mestre inquestionável, suas obras mais conhecidas sendo as fantasias sobre óperas e outras melodias populares. [13]

Estilo

Thalberg está ligado à escola de Paris do piano, a qual explorava no século XIX a virtuosidade técnica e o gosto do público em geral pelas paráfrases de temas famosos de ópera. Os efeitos visavam de certa forma agradar o ouvido e encantar os olhos. Será característico de Thalberg como pianista a qualidade de seu cantabile, do legato e do estilo comedido de sua performance, oposto à movimentação corpórea excessiva que caracterizou os concertos de Liszt na mesma época. Ficou famoso também por ter desenvolvido o chamado “efeito de três mãos”, que consistia basicamente em estruturar muitas passagens de suas obras explorando o teclado do piano em três níveis distintos: (1) um baixo na mão esquerda, (2) uma melodia no registro médio do piano, geralmente alternada entre os polegares das duas mãos e (3) figuras ornamentais (arpejos, escalas, trilos etc.) no registro agudo do instrumento com a mão direita. Em várias de suas paráfrases também fará uso de técnicas contrapontísticas, provavelmente como resultado de seus estudos com Simon Sechter. [14]

Melodia

Thalberg era amplamente reconhecido por sua habilidade de fazer a melodia se destacar, independentemente do que mais estivesse ocorrendo na partitura. Uma de suas obras para piano é justamente a L’art du chant appliqué au piano, Op.70 (“A arte do canto aplicada ao piano”), de 1853. Trata-se de uma série de vinte e quatro arranjos de famosas músicas do repertório de canto lírico. O próprio Thalberg recomendava que os pianistas tivessem também alguma formação em Canto, para, assim, melhor dominarem a arte da boa melodia:

Devido ao influxo da ópera italiana no início do século XIX na Europa, um esforço consciente foi feito para se compor obras com uma distinta qualidade ‘cantante’. Thalberg concentrou-se em produzir um estilo melódico de ‘cantilena’ em tudo o que ele tocava. Ele recomendou no Prefácio de seu ‘Método’ que os pianistas efetivamente tomassem lições de canto. Ele próprio estudou canto por cinco anos com o renomado baixo espanhol, Manuel Garcia (1805-1906), que ensinou no Conservatório de Paris. [15]

As paráfrases de ópera

As obras de Thalberg que se tornaram mais conhecidas junto ao público e que também se tornaram muito populares no repertório pianístico são, sem dúvida alguma, suas transcrições e paráfrases de óperas.

As fantasias sobre temas de ópera eram feitas sobretudo sobre óperas italianas, as quais eram amplamente ouvidas nos teatros europeus. Eis alguns exemplos de óperas sobre as quais Thalberg escreveu algum arranjo para piano:

  • de Rossini: Le Siege de Corinthe, Moses, La Donna del Lago, Il Barbiere di Siviglia, Semiramide;
  • de Bellini: La Straniera, I Capuleti ed i Montecchi, La Sonnambula, Beatrice di Tenda, Norma;
  • de Donizetti: Lucia di Lammermoor, Lucrezia Borgia, La Fille du Regiment, Don Pasquale, L’elisir d’amore;
  • de Verdi: Il Trovatore, Rigoletto, La Traviata, Un ballo di maschera.

Há ainda obras suas sobre Robert le Diable e Les Huguenots, de Meyerbeer; Don Giovanni, de Mozart; e La Muette de Portici, de Auber. [16]

3. FANTASIA SOBRE LA SONNAMBULA

Sinopse

A ação da Ópera La Sonnambula se passa em uma vila suíça no início do século XIX. Amina (Soprano), filha adotiva de Teresa (Mezzo-Soprano) – dona do moinho da vila – comemora seu noivado com Elvino (Tenor), um jovem e rico fazendeiro. Durante os festejos, chega um misterioso estrangeiro, que é, na verdade, o Conde Rodolfo (Baixo), que retorna à vila de sua infância depois de muitos anos. O Conde hospeda-se naquela noite na hospedaria da vila, cuja proprietária é Lisa (Soprano), apaixonada por Elvino. Ninguém sabe, mas Amina é sonâmbula e justamente naquela noite perambula pela vila chegando até o quarto em que o Conde está hospedado. Vendo a moça em sonambulismo, o Conde discretamente se retira, mas a presença dela no quarto é descoberta por Lisa e revelada a Elvino. Amina acorda, não consegue explicar sua presença no quarto do Conde e Elvino rompe o noivado com ela. O Conde posteriormente procura explicar o que ocorreu, mas os habitantes da vila ignoram o que é sonambulismo e não acreditam nele. Amina surge, então, novamente perambulando sonâmbula sobre um velha ponte do moinho e a verdade se torna evidente a todos. Amina desperta, reconcilia-se com Elvino e a Ópera termina com nova festa no vilarejo pelo casamento dos dois. [17]

Narrativa

Em algumas famosas paráfrases/fantasias de Liszt sobre temas de ópera o núcleo dramático da obra original é de certa forma transposto à escrita pianística. Isso ocorre, por exemplo, na fantasia de Liszt sobre temas da Sonnambula. Na versão de Thalberg para a mesma Ópera, por sua vez, o elemento narrativo original é de certa ignorado, dando-se atenção apenas aos temas musicais em si e ao potencial deles para eventuais variações e desenvolvimentos.

Muito da produção dos pianistas-compositores [do século XIX] era sob a forma de fantasias operísticas. O influxo da melodiosa ópera italiana teve um impacto enorme em Paris, e os pianistas tiraram vantagem das óperas de sucesso publicando seus próprios arranjos sobre as melodias mais populares. Frequentemente, pouca consideração era dada à sucessão lógica dos temas dentro de tais arranjos. Ao invés disso, o compositor escolhia os temas conforme a adequação deles a variações, elaborações e contrastes. [18]

Estrutura

A Fantasia de Thalberg sobre La Sonnambula apresenta uma estrutura amplamente usada em obras suas desse tipo: uma Introdução de caráter mais livre, temas da própria Ópera seguidos por variações dos mesmos e uma seção conclusiva.

  1. INTRODUÇÃO: Thalberg emprega nessa seção livre introdutória o tema “Oh come lieto è il popolo” do Ato 1 da Sonnambula.
  2. TEMA 01: é possivelmente a ária mais famosa de toda a Ópera, aquela que a personagem Amina canta na última cena do Ato 2, “Ah! non credea mirarti”.
  3. TEMA 02: é o quinteto do final do Ato 1, “D’un pensiero e d’un accento”.
  4. FINAL: seção de caráter livre, com elementos virtuosísticos, original de Thalberg.

Introdução

A seção introdutória (Allegro moderato) da Fantasia de Thalberg sobre La Sonnambula consta de 52 compassos. É baseada no tema orquestral de “Oh come lieto è il popolo …”, Ato 1. Na Ópera de Bellini esse é o momento em que o Conde Rodolfo já está recolhido a seus aposentos na hospedaria da Lisa, onde passará a noite. Ele ouve um barulho na janela e quem aparece em seu quarto é a jovem Amina, em estado de sonambulismo. Ela perambula falando de seu amor por Elvino e ansiosa pelo seu casamento com ele. O Conde, reconhecendo-a como sonâmbula, deixa-a sozinha dormindo em seu quarto e parte silenciosamente do vilarejo. Entretanto será essa presença de Amina no quarto do Conde que, uma vez descoberta por Elvino e pelos aldeões, resultará em que Amina seja mal julgada.

A música original da orquestra nesse trecho é toda construída sobre grupos de semicolcheias repetidas (em terças) e colcheias nas madeiras (flauta, oboé e clarinete) sempre acompanhados pelas cordas em pizzicato. Sobre esse característico tema orquestral, surgem as linhas melódicas de Amina e Rodolfo, as quais, entretanto, não são empregadas por Thalberg.

“Oh come lieto è il popolo …”: trecho original de Bellini

Apesar da sua Introdução estar escrita em Mi bemol maior, Thalberg a constrói valendo-se de diversas modulações – próprias do caráter mais livre dado à seção. O tema é apresentado na tonalidade original de Bellini, Fá maior, nos compassos 18 a 21. Mas também aparece em outras tonalidades: Si bemol maior (c. 25 e 26), Dó maior (c. 27-28), Sol maior (c. 33-34) e Sol menor (c. 35-36). Entre os compassos 43 e 52 há uma seção de oitavas alternadas entre as duas mãos em uma progressiva sequência cromática ascendente, preparando a entrada do Tema 01 (c. 53).

Indico abaixo o trecho original da Ópera de Bellini e na sequência a minha própria gravação para essa Introdução da Fantasia de Thalberg. Os demais trechos também serão indicados na sequência do presente artigo.


Bellini, Ópera “La Sonnambula”, Ato 1: “Oh come lieto è il popolo …”

AMINA
(sogna il momento della cerimonia)
Oh come lieto il popolo
Che al tempio ne fa scorta!
RODOLFO
In sogno ancor quell’anima
È nel suo bene assorta.
AMINA
Ardon le sacre tede.
RODOLFO
Essa all’altar si crede!
AMINA
Oh madre mia, m’aita;
Non mi sostiene il piè!
RODOLFO
No, non sarai tradita,
Alma gentil, da me.
AMINA
Oh madre mia! Oh madre mia!…
RODOLFO
No, no, da me No, no, da me…
AMINA
Ah! Deh! m’aita,
ah! Deh! Oh, madre mia…
Non mi sostiene il piè.
RODOLFO
… ah nol sarai da me!
(Amina sogna che il sacro ministro
le domanda il giuramento d’amore.
Amina alza la destra)

AMINA
Cielo, al mio sposo io giuro
Eterna fede e amor!
RODOLFO
Giglio innocente e puro,
Conserva il tuo candor!
AMINA
Elvino!… alfin sei mio!
RODOLFO
Fugassi.
AMINA
Elvino!… già tua son io.
RODOLFO
Ah se…
AMINA
Abbracciami. Oh! contento
Che non si può spiegar!
RODOLFO
…più resto, io sento
La mia virtù mancar.
AMINA
Oh! Contento ecc
RODOLFO
… già sento
la mia virtù mancar.
AMINA
Elvino!… Abbracciami.
Alfin sei mio, alfin sei mio
AMINA
(sonhando com a cerimônia de casamento)
Oh, como alegre está o povo
Que até à igreja nos acompanha!
RODOLFO
Até mesmo nos sonhos essa jovem
Segue absorta em seu amor.
AMINA
Acesas estão as sagradas velas.
RODOLFO
Ela crê que está diante do altar!
AMINA
Oh, minha mãe, ajuda-me;
Não me sustentam os pés!
RODOLFO
Não, não serás atraiçoada,
Ó alma nobre, por mim.
AMINA
Oh, minha mãe! Oh, minha mãe …
RODOLFO
Não, não te atraiçoarei …
AMINA
Ah! Ajuda-me!
Ah, minha mãe!
Não me sustentam os pés.
RODOLFO
Não, não te atraiçoarei.
(Amina sonha que o sacerdote
lhe pede o juramento de amor.
Amina levanta a mão direita)
AMINA
Céus, ao meu esposo eu juro
eterna fidelidade e amor.
RODOLFO
Ó lírio inocente e puro,
Conserva a tua candura!
AMINA
Elvino! … finalmente és meu!
RODOLFO
Devo ir-me.
AMINA
Elvino! … finalmente sou tua!
RODOLFO
Ah, sim …
AMINA
Abraça-me! Oh, estou tão contente
que não se pode explicar!
RODOLFO
… permaneço aqui, sinto
fraquejar a minha virtude!
AMINA
Oh, estou tão contente etc.
RODOLFO
… já sinto
minha virtude fraquejar.
AMINA
Elvino! … Abraça-me!
Finalmente és meu.

Thalberg, Fantasia sobre “La Sonnambula” – PARTE 1

Tema 01

a) Tema

O primeiro tema trabalhado por Thaberg é a célebre ária de soprano “Ah! non credea mirarti …”, do final do Ato 2. A ária original de Bellini é dividida em duas partes, uma primeira em Lá menor e uma segunda em Dó maior. Thalberg praticamente faz uma transcrição literal da primeira parte da ária entre os compassos 53 e 66, apenas alterando a tonalidade de Lá menor (original) para Si bemol menor, um semitom acima. A apresentação do tema se dá do modo convencional, com a melodia principal na mão direita e a mão esquerda reproduzindo o acompanhamento original da orquestra.

b) Variação 01

Entre os compassos 67 e 80, Thalberg não coloca a segunda parte da ária de Bellini, mas sim uma repetição da mesma primeira parte, sob a forma de uma primeira variação. Essa variação é feita inserindo-se pela primeira vez o seu famoso “efeito de três mãos”. A mão direita passa a executar apenas trinados e algumas escalas cromáticas, com finalidade claramente ornamental. A mão esquerda, por sua vez, continuará executando o acompanhamento de arpejos, mas também apresentará a melodia principal, no registro médio do teclado.

c) Variação 02

Entre os compassos 81 e 91, Thalberg faz uma segunda variação sobre a primeira parte da ária de Bellini. Dessa vez a mão esquerda continua com o acompanhamento (arpejos em acordes de terças), mas alterna com a mão direita a execução da melodia principal em oitavas no registro médio do teclado. A mão direita fará ainda uma série de arpejos ascendentes e descendentes, explorando o registro agudo. É mais uma aplicação do “efeito de três mãos”.

A partir do compasso 91 até o compasso 102, Thalberg retoma a melodia principal em notas simples, sem oitavas, e passa a explorar a segunda parte da ária original de Bellini. O final dela, contudo, não é apresentado, sendo substituído por uma seção de transição que prepara já a entrada do Tema 02, a partir do compasso 108. Entre os compassos 102 e 108, Thalberg mantém a estrutura em três níveis e os arpejos característicos, mas já insere motivos do próximo tema.


Bellini, Ópera “La Sonnambula”, Ato 2: “Ah, non credea mirarti …”

AMINA
Ah! non credea mirarti
Sì presto estinto, o fiore;
Passasti al par d’amore,
Che un giorno sol durò.
Che un giorno sol, ah sol durò.
ELVINO
Io più non reggo …
AMINA
Passasti al par d’amore …
ELVINO
… Più non reggo a tanto duolo.
AMINA
… Che un giorno,
che un giorno sol durò.
Potria novel vigore
Il pianto mio recarti …
Ma ravvivar l’amore
Il pianto mio, ah no, no, non può.
Ah non credea, …
Passasti al par d’amor, ecc.
AMINA
Ah, não acreditei que tão cedo
secas as veria, ó flores:
murchastes como o amor,
que somente um dia durou.
que um só dia, ah, um só dia durou.
ELVINO
Não posso suportar …
AMINA
Murchastes como o amor …
ELVINO
… não posso suportar tanta dor.
AMINA
… que um dia,
um só dia durou.
Poderia novo vigor
conceder-lhes o meu pranto,
mas reavivar o amor
as minhas lágrimas, ah, não podem,
Ah, não acreditei …
Murchastes como o amor etc.


Thalberg, Fantasia sobre “La Sonnambula” – PARTE 2

Tema 02 e Final

A partir do compasso 109 da Fantasia de Thalberg é apresentado o Tema 02, praticamente uma transcrição do Quinteto “D’un pensiero e d’un accento” da ópera original de Bellini. Thalberg transpõe um semitom acima novamente a melodia original de Bellini, passando de Mi bemol maior para Mi maior. É o momento em La Sonnambula em que Elvino chega à pousada de Lisa e, juntamente com os aldeões (lá presentes para homenagearem o Conde Rodolfo), surpreende Amina dormindo no quarto do Conde. Na Ópera cada um dos personagens expressa um sentimento diferente: Amina afirma que não é culpada de pecado algum naquela ocasião; Elvino, desesperado pela suposta traição de sua amada noiva; Lisa, que quer ela própria se casar com Elvino, insiste que Amina é culpada; Teresa, mãe de Amina, pede que se dê ouvidos ao menos às explicações de Amina; Alessio e o coro dos aldeões demonstram sua surpresa pela suposta má conduta da jovem cujas virtudes tanto estimavam.

Thalberg explora novamente o seu “efeito de três mãos”, reproduzindo o efeito do dueto alternado de Amina e Elvino na cena original (c. 116 a 120 da Fantasia), ampliando a sonoridade do acompanhamento (c. 124 a 133) ou inserindo escalas/arpejos a modo de voz intermediária (c. 121 a 123).


Bellini, Ópera “La Sonnambula”, Ato 2: Quinteto “D’un pensiero …”

AMINA
D’un pensiero e d’un accento
Rea non son, rea non son
né il fui giammai.
Ah! se fede in me non hai,
Mal rispondi a tanto amor.
ELVINO
Voglia il cielo che il duol ch’io sento
Tu provar, tu provar non debba mai!
Ah! tel mostri s’io t’amai
Questo pianto del mio cor.
AMINA
Ah mel credi, ah! rea non sono.
Mel credi, rea non sono
nè il fui giammai,
Ah! Se fede in me non hai
mal rispondi a tanto amor.
CONTADINI
(ad Amina)
Il tuo nero tradimento
è palese e chiaro assai.
ELVINO
Traditrice! Da me ti scosta!
Spergiura!
AMINA
Ah, mel credi! Ah, rea non sono!
Sventurata!
LISA
(Ad Amina)
Il tuo nero tradimento
è palese e chiaro assai.
TERESA
(difendendo Amina)
Deh! l’udite un sol momento:
Il rigor eccede omai.
CONTADINI
In qual cor,
in qual cor più, ah!
se quel cor fu
mentitor?
LISA, TERESA
In qual cor fidar più mai,
se quel cor fu mentitor? ecc.
ELVINO
Voglia il cielo,
voglia il cielo che il mio tormento
tu provar,
tu provar non debba mai!
Ah, tel dica s’io t’amai
questo pianto
questo pianto del mio core, ecc.
AMINA
Nem de pensamento, nem de palavra
sou eu culpada, sou eu culpada
nem jamais fui.
Ah, se não acreditas em mim,
correspondes mal a tanto amor.
ELVINO
Queira o céu que a dor que eu sinto
jamais tenhas que sofrer!
Ah, que te diga se te amei
o pranto de meu coração.
AMINA
Ah, crê em mim, não sou culpada,
crê em mim, não sou culpada
nem jamais fui,
Ah, se não acreditas em mim,
correspondes mal a tanto amor.
ALDEÕES
(a Amina)
Tua pérfida traição
está bem clara e evidente.
ELVINO
Traidora! Afasta-te de mim!
Desleal!
AMINA
Ah, crê em mim! Ah, não sou culpada!
Ó infeliz!
LISA
(a Amina)
Tua pérfida traição
está bem clara e evidente.
TERESA
(defendendo Amina)
Escutai-a um só momento:
Excessiva é a vossa ira.
ALDEÕES
Em que coração,
em que coração confiar? Ah!
se seu coração foi
mentiroso?
LISA, TERESA
Em que coração confiar,
se mentiu seu coração? etc.
ELVINO
Queira o céu
queira o céu que meu tormento
jamais tenhas
que sofrer!
Ah, que te diga se te amei
este pranto
este pranto de meu coração.

Thalberg, Fantasia sobre “La Sonnambula” – PARTE 3

Entre os compassos 138 e 149 Thalberg insere uma seção de transição, com material próprio seu e de caráter modulatório, preparando a retomada do Tema 02 sob a forma de uma variação a partir do compasso 149. Essa variação mantém intacto o tema em si e explora apenas a textura pianística. A melodia principal é mantida no registro médio do piano, alternada entre as duas mãos, inicialmente com notas simples e depois com oitavas. No registro agudo e no grave há uma série de trinados em movimentos descendentes, reforçando a sonoridade harmônica já apresentada nos acordes da mão esquerda.


Thalberg, Fantasia sobre “La Sonnambula” – PARTE 4

Entre os compassos 167 e 180, Thalberg coloca novamente uma nova seção de transição na forma de sequências cromáticas, nas quais explora, inclusive, um efeito técnico que foi característico a ele e a Liszt: as escalas cromáticas em que mão esquerda e mão direita alternam-se rapidamente. Sabe-se que, na época, esse tipo de efeito causava grande impressão junto ao público. Do compasso 181 em diante tem-se a seção final propriamente dita (Presto allegramente), em Dó maior e compasso 6/8, basicamente de caráter brilhante/virtuosístico, apresentando um novo tema em uma frase de oito compasso e explorando efeitos técnicos, tais como trêmulos, oitavas cromáticas e arpejos.

4. CONCLUSÃO

Finalizamos, assim, a sequência de estudos acerca de paráfrases pianísticas do século XIX feitas sobre a Ópera La Sonnambula de Bellini. Selecionei três pianistas-compositores da época com suas respectivas versões para piano. Vimos a de J. Wieniawski, a de F. Liszt e agora a de Thalberg. Deixamos, assim, um registro desse antigo repertório para piano, hoje muitas vezes esquecido, o qual certamente recebeu muitos aplausos no passado, ao levar ao salões de concerto algumas das belas melodias da famosa Ópera de Bellini. O grande tenor italiano Beniamino Gigli (1890-1957) dizia que La Sonnambula tinha “alguns dos fragmentos musicais mais belos de todas as óperas”. [19]

Nos cum prole pia – benedicat Virgo Maria.

Referências

ALLORTO, Riccardo. Nuovo Dizionario Ricordi della musica e dei musicisti. Milão: Ricordi, 1976.

FARIA, Paulo Rogério C. Pianismo de Concerto no Rio de Janeiro do Século XIX. 291 f. Dissertação (Mestrado) – Escola de Música da UFRJ, Rio de Janeiro, 1996.

GIGLI, Beniamino. Memorias de Beniamino Gigli. Buenos Aires: Ediciones Troquel, 1957.

HOMINICK, Ian G. Sigismund Thalberg (1812-1871), Forgotten Piano Virtuoso: His Career And Musical Contributions. 138 f. Tese (Doutorado) – Ohio State University, Columbus, 1991.

L’iride Italiana , 04 de outubro de 1855.

Marmota Fluminense, Rio de Janeiro, 31 de julho de 1855.

MACPHERSON, Ewan. SIGISMOND THALBERG. The Catholic Encyclopedia. Vol. 14. New York: Robert Appleton Company, 1912. Disponível em: <http://www.newadvent.org/cathen/14553e.htm>, acesso em: 30 mai. 2021.

O Jornal das Senhoras , Rio de Janeiro, 22 de julho de 1855.

OSBORNE, Charles. The Bel Canto Operas of Rossini, Donizetti, Bellini. Porland: Amadeus Press, 1994.

+LAUS DEO VIRGINIQUE MATRI+


Notas:

[1] ALLORTO, 1976, HOMINICK, 1991, p. 656; p. 3.

[2] HOMINICK, 1991, p. 6-8.

[3] HOMINICK, 1991, p. 6-8.

[4] Apud HOMINICK, 1991, p. 8, tradução nossa.

[5] MACPHERSON, 1912; HOMINICK, 1991, p. 9-11.

[6] HOMINICK, 1991, p. 12-19.

[7] FARIA, 1996, p. 142-143.

[8] FARIA, 1996, p. 144-145.

[9] FARIA, 1996, p. 144-145.

[10] O Jornal das Senhoras , Rio de Janeiro, 22 de julho de 1855, p. 3.

[11] Marmota Fluminense, Rio de Janeiro, 31 de julho de 1855, p. 1.

[12] L’iride Italiana , 04 de outubro de 1855, p. 6.

[13] MACPHERSON, 1912, tradução nossa.

[14] FARIA, 1996, p. 141-142. O pianista Raymond Lewenthal (1923-1988) apontou alguns princípios gerais da música de Thalberg: (1) sua escrita pianística é contrapontística; (2) cada componente contrapontístico é isolado em seu próprio âmbito dinâmico; (3) a melodia principal é geralmente interna: a) às vezes é dividida entre as duas mãos, b) frequentemente está na região média do telado, que é a mais rica para o cantabile no piano e c) frequentemente é executado com os dedos mais fortes, os polegares; (4) o pedal é exigido para conectar e sustentar as notas da melodia, de modo que as mãos fiquem livres para executarem contrapontos ou apenas arpejos. (HOMINICK, 1991, p. 86)

[15] HOMINICK, 1991, p. 50, tradução nossa.

[16] Para uma proposta de lista completa de obras de Thalberg, cf. HOMINICK, 1991, 104-113.

[17] OSBORNE, 1994, p. 332-336.

[18] HOMINICK, 1991, p. 30, tradução nossa.

[19] GIGLI, 1957.

Prof. Thiago Plaça Teixeira

O Professor Thiago Plaça Teixeira é Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Paraná, Bacharel em Piano pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná, Mestre e Doutor em Música pela Universidade Federal do Paraná. Foi premiado em concursos de piano e atuou com diversos instrumentistas, cantores e grupos corais em concertos, óperas, festivais e séries de música de câmara. Trabalhou em instituições de ensino superior no Paraná ministrando disciplinas teóricas e práticas. Como pesquisador, direciona seus estudos à música sacra católica, área em que também tem experiência prática atuando como organista.

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