Formando o bom gosto musical

Formando o bom gosto musical

1. Introdução

Dá-se muita importância para a formação de vários aspectos da vida: profissional, pessoal etc., entretanto, há um campo para o qual, geralmente, não se é dado a devida atenção: a formação do bom gosto musical.

Apesar de muitos não concordarem, o bom gosto musical não é uma questão de “escolha pessoal”; é, na realidade, fruto de uma boa formação de repertório de escuta para apreciação musical. Mas como formar este bom gosto? O que é necessário?

Não há como formar um bom gosto musical sem escuta musical diária de boas músicas. Porém, é necessário saber o que é uma boa música.

Neste artigo vou pontuar alguns critérios para se avaliar uma boa música, explicando cada um deles. Falarei também da rotina de escuta musical, de sua importância, darei sugestões de músicas para escuta e apreciação, explicarei como se deve ouvir as músicas e darei alguns exercícios para treinar o ouvido apreciador.

2. A beleza musical

Antes de adentrar nos critérios para avaliação da boa música, vou expor rapidamente alguns conceitos da beleza para fazer um paralelo com a música. De modo efetivo, a música só pode ser considerada boa se ela resplandece a beleza e leva o ouvinte à contemplação do belo.

“A beleza é a perfeição do ente que resplandece pela ordem e deleita pela apreensão”.[1]

“O que parece determinar, contudo, que algo criado seja dito belo é a ordem que ele manifesta entre os diferentes elementos que o compõem. Por isso, há uma estreita relação entre beleza (“certa proporção entre os membros” e “forma agradável à consciência intuitiva”) e harmonia, considerada aqui como ordem entre os diferentes elementos que compõem um conjunto.”[2]

A partir disso, em questão musical, podemos dizer que a boa música, a bela música, é a perfeição dos sons que resplandece pela ordem e deleita pela apreensão.

É natural ao ser humano contemplar e se deleitar com a beleza das coisas, vistas ou ouvidas. Vale aqui dizer que a beleza não é subjetiva, não depende do gosto; a beleza é objetiva, ela deriva da perfeição, da ordem, da proporção, da harmonia entre os diferentes elementos de um conjunto.

A ordem é composta por uma hierarquia de valores. No caso da música, podemos considerar os seguintes elementos musicais para elencar a ordem numa peça musical: melodia, harmonia, ritmo, timbre.

Sendo assim, levantei quatro critérios de se avaliar uma boa e má música.

3. Critérios para avaliação de boa e má música

Seguindo o pensamento do tópico anterior para a beleza musical, uma música pode ser considerada boa se possuir:

1) grande riqueza melódica;
2) enredo harmônico equilibrado com a melodia;
3) o ritmo como servo da música, não como ditador;
4) variedade de timbres, tanto instrumentais quanto vocais.

Neste sentido, enquadra-se bem nestes quatro aspectos a chamada música clássica.

Para fins didáticos, vou explicar cada um dos pontos supracitados.

3.1. Uma boa música deve possuir grande riqueza melódica

Uma música com uma melodia de algumas poucas notas que sempre se repetem é uma melodia pobre. Pode até ter as sete notas musicais, mas sem uma variação considerável ao longo da música, sem temas diferentes, sem ornamentações, a música torna-se repetitiva e enfadonha. A riqueza melódica é como a riqueza de uma narrativa de um bom livro: com vários personagens, vários cenários, várias histórias dentro da história. É assim que a boa música também deve ser construída.

3.2. Uma boa música deve possuir enredo harmônico equilibrado com a melodia

Uma melodia sem harmonia é como um “andar solitário”. É a harmonia que dá a cor e a graça de uma obra musical. Ela funciona como uma trama de um tecido, como colunas em que a melodia se apoia para caminhar. A harmonia funciona como um suporte. E como suporte, não pode se sobrepor, senão esmaga. Uma música bem construída possui uma harmonia que caminha sob a melodia, apoiando-a, enobrecendo-a, nunca sobrepondo-a ou ocultando-a.

3.3. Uma boa música deve possuir o ritmo como servo da música, não como ditador

O ritmo serve para marcar o andamento, não para bagunçar a música. Se tudo o que você consegue escutar em uma música são as batidas que ela contém, essa música está desequilibrada. Dando um exemplo: vamos imaginar o rufar dos tambores. Para chamar a atenção e deixar as pessoas em alerta ele serve muito bem. Mas, para criar uma música que seja ouvida durante um certo tempo, com apreensão e deleite, será muito difícil. Mesmo que um violino esteja tocando uma suave melodia e algum instrumento fazendo uma base harmônica adequada, se os tambores ficarem percutindo o tempo todo, a música torna-se muito irritante por ser muito barulhenta. A melodia será sufocada, a harmonia se esvanecerá e o ouvinte só será capaz de pensar “quando é que esse barulho vai acabar?”, porque, no fundo, muito ritmo descompensado vira barulho.

3.4. Uma boa música deve possuir variedade de timbres, tanto instrumentais quanto vocais

A variedade de timbres faz com que a música ganhe uma beleza sem igual. Não é raro ficarmos estupefatos diante de uma obra escrita para vários instrumentos. Cada um deles funciona como um personagem dentro da música, cada um deles nos proporciona uma escuta mais atenta. Cada som diferente está lá com um propósito. Ao serem tocados, eles dão texturas diferentes (fluidas, ásperas, etéreas etc.) e cores variadas (quentes, frias, metálicas, opacas etc.) para a música. É um conjunto de sensações auditivas que enriquecem a escuta e a apreciação!

Deixo abaixo um vídeo-áudio com a partitura da música Et incarnatus est, da Missa em Dó menor de Mozart.


Et incarnatus est, Missa em Dó menor, Wolfgang Amadeus Mozart

Esta obra musical foi composta com verdadeira delicadeza. Mozart usa, inicialmente, solos de flauta, oboé e fagote, que são instrumentos de timbre suave e delicado, para dar leveza à música e uma sensação de “flutuação” e “elevação”. Depois continua com violinos, viola, contrabaixo e órgão, utilizados como trama de fundo da obra musical.

Este tipo de escolha de instrumentos não é ao acaso, um bom compositor sabe fazer uso dos recursos timbrísticos para transmitir, na música, certas emoções e sensações.

Et incarnatus est faz parte do Credo[3], e significa:

Et incarnatus est de Spiritu SanctoE encarnou, por obra do Espírito Santo
Ex Maria VirgineNo seio de Maria Virgem
Et homo factus estE fez-se homem

Note como a melodia é construída com cuidado e suavidade, com ornamentações, com variedade, sendo acompanhada pela harmonia que a apoia em sua base, com o ritmo sendo levado gentilmente com a música, como um “longo véu de noiva”. Todo este equilíbrio e delicadeza musical traduz e expressa bem o texto “E encarnou pelo Espírito Santo no seio da Virgem Maria e se fez homem”.

Esta é uma das minhas músicas preferidas e ela exemplifica bem os quatro critérios que citei da boa música.

4. Recomendações para formar um bom gosto musical

Para se formar um bom gosto musical, eu recomendo, inicialmente, fazer uma hora de escuta diária de boas músicas. Sugiro, ainda, para estas escutas iniciais, músicas de três períodos da História da Música: Renascentista, Barroco e Clássico. Por quê? Porque, de modo geral, suas formas musicais são mais definidas e há um cuidado maior com a elaboração das melodias. As músicas dos períodos posteriores são mais complexas, as formas são mais livres, alguns períodos não utilizam mais a composição tonal, então não recomendo para apreciação iniciante.

Conforme a pessoa avança na apreciação musical, ela vai desenvolvendo critérios de avaliação objetivos, que são essenciais para a diferenciação da boa música e da música ruim. Assim, após passar por uma maturidade na escuta e apreciação musical, ela poderá incluir no repertório de escuta outras músicas de outros períodos, observando os quatro aspectos já citados para a avaliação da boa música.

É importante apresentar também, nos momentos de apreciação para formação do bom gosto musical, o Canto Gregoriano e a Polifonia Clássica, pois são os cantos sagrados da Santa Igreja Católica; músicas que deram origem ao vasto patrimônio musical ocidental, do qual desfrutamos hoje.

5. Sugestões de músicas para escuta e apreciação

Como sugestão de escuta musical iniciante, indico os seguintes compositores para cada período:

Renascentista →Palestrina, Victoria (Polifonia Clássica)
Barroco →Vivaldi, Handel, Scarlatti, Corelli
Clássico →Mozart, Haydn

Você pode facilmente montar uma playlist no Spotify ou mesmo no YouTube. A vantagem do Spotify é que é possível baixar as músicas no celular ou computador (dentro do aplicativo do Spotify) para escutar off-line. Eu costumo usar este recurso.

6. Treinando o ouvido

Se seu intuito é realmente formar uma boa escuta musical para desenvolver um bom gosto musical, é necessário que você preste atenção na música durante a escuta, como uma degustação. Moldar um gosto é desconstruir outros gostos. Pode ser que no início você sinta um pouco de dificuldade, mas posso assegurar que com o tempo os ouvidos aprendem a ouvir, e agradecem!

Vou fazer aqui um pequeno guia de escuta, para você começar a treinar seu ouvido musical.

Pequeno Guia de Escuta para treinar o ouvido musical:
1. Escute a música tentando perceber os diferentes timbres e instrumentos.
2. Durante a escuta, tente perceber as diferentes vozes e os silêncios durante a música.
3. Enquanto a música toca, tente “desenhar” a melodia em sua mente, como se fosse uma linha percorrendo um caminho, nos agudos indo para cima e nos graves indo para baixo.
4. Tente perceber pequenos trechos ou grandes seções que se repetem durante a música.
5. Tente perceber as mudanças de ritmo (dois tempos, três tempos) e de andamento (lento ou rápido).
6. Tente perceber as mudanças de textura musical (voz solo, coro, instrumento solista, orquestra toda).

Com esse pequeno guia de escuta você começará a “abrir” sua audição. E você não precisa entender de música nem saber ler partitura para fazer isto!

7. Escuta musical para crianças

Um ouvido bem treinado é uma dádiva! Não somente os adultos se beneficiam disto como as crianças, principalmente! A escuta musical aguça o ouvido, ajuda na identificação e diferenciação dos sons, o que é muito importante na fase de pré-alfabetização e alfabetização. Portanto, inclua seu filho neste momento de escuta também!

Para crianças menores de 3 anos, não espere que fiquem sentados escutando, até porque é próprio da idade brincar. Então, apenas mantenha seu filho por perto enquanto você faz sua escuta musical.

Para crianças maiores de 3 anos, você pode seguir o guia do tópico anterior, mas sem forçar. Quanto maior a idade da criança, melhor vai ser a resposta dela para a escuta e apreciação musical. Deixe-a ouvir a música, e, durante a escuta, faça algumas perguntas daquilo que você consegue ouvir para focar a atenção da criança ao que está acontecendo durante a execução musical.

De qualquer forma, não torne este momento de escuta algo sistemático. Faça-o prazeroso e um momento de reunião familiar. Como estamos falando de crianças, não precisa fazer todas as atividades propostas no tópico anterior com seus filhos, mas se eles escutarem todos os dias um bom repertório musical, o ouvido musical deles estará sendo desenvolvido e o sistema psico-cognitivo estimulado.

8. Considerações

A formação do bom gosto musical é um treino diário de escuta musical de boas músicas. Posso dizer que é uma disciplina e um hábito para se impor para toda a vida.

Ao formar o seu bom gosto musical você estará formando também um ouvido musical. E um ouvido bem treinado é essencial para a apreciação da beleza musical.

Os benefícios de uma boa escuta musical e de um ouvido bem treinado são grandes. Para as crianças, estimula tanto seu sistema psico-cognitivo como desenvolve seu ouvido musical. Para os jovens e adultos, aumenta a sensibilidade de escuta e desenvolve sua inteligência musical. Portanto, desde a mais tenra idade até a idade mais avançada só se tem a ganhar com uma boa formação de gosto musical e com a formação de um ouvido apreciador!

Se você ficou com alguma dúvida, deixe nos comentários, terei prazer em respondê-las! Se gostou do artigo, compartilhe com seus amigos!


[1] BANYERES, H. La belleza según santo Tomás de Aquino. E-aquinas, Barcelona, ano 4, jan, 2006, p.18

[2] BERGONSO, M. C. C. Número, Som e Beleza: A Estética Musical em Boécio. 100f. Dissertação (Mestrado em Música) – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2013, p. 33.

[3] Tradução retirada de LEFEBVRE, G. Missal Quotidiano e Vesperal. Bruges, 1951, p. 935.

Profa. Melissa Bergonso

A Professora Melissa Bergonso é Bacharel em Canto lírico pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná, e Mestre em Música pela Universidade Federal do Paraná. Tem grande experiência na área da música sacra católica, possui em seu repertório de soprano várias árias de Oratórios, Missas, Óperas e Canções de Câmara e participou também de produções locais de óperas. Dedica-se ao ensino do canto para vozes femininas e, como pesquisadora, à área de estética da música, psicologia e cognição musical, pedagogia e técnica vocal. Co-fundadora do Instituto de Música CLARITASPULCHRI.

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