A Música e a coragem

A Música e a coragem

A coragem [ou fortaleza] é “uma virtude cardeal infundida com a graça santificante que aviva o apetite irascível e a vontade para que não desistam de conseguir o bem árduo ou difícil, nem mesmo pelo máximo perigo da vida corporal.” [1]

1. Introdução

Um dos efeitos da Música é, segundo S. Tomás de Aquino, o de estabelecer nos afetos do homem certa firmeza de alma:

Affectus enim hominis per instrumenta et consonantias musicas dirigitur, quantum ad tria: quia quandoque instituitur in quadam rectitudine et animi firmitate: quandoque rapitur in celsitudinem: quandoque in dulcedinem et jucunditatem.

“O afeto do homem pelos instrumentos e pelas harmonias musicais se ordena a três coisas: (1) ora se estabelece em certa retidão e firmeza de alma; (2) ora se arrebata às coisas elevadas; e (3) ora repousa na doçura e na alegria.” [2]

Ora, o próprio S. Tomás explica que se pode considerar a coragem em dois sentidos. Em primeiro lugar, como sendo uma virtude geral, significando, então, uma certa firmeza de alma, condição de qualquer virtude. Em segundo lugar, como sendo uma virtude especial, significando uma certa firmeza da alma em suportar e vencer os obstáculos mais difíceis, sobretudo os perigos graves. [3]

Portanto, se a coragem consiste em uma certa firmeza da alma (firmitatem animi) e se a Música tem como um de seus efeitos estabelecer certa firmeza de alma (animi firmitate), podemos concluir que há um nexo causal entre a Música e a virtude da coragem (ou fortaleza). É o que tratarei neste artigo.

2. Os apetites

Em artigo anterior, sobre os temperamentos, já tratei das diferentes paixões que integram nossa vida afetiva. Apenas relembro aqui que nossa alma tem as potências da inteligência e da vontade; e que nosso corpo tem o seu aparelho cognitivo (cinco sentidos externos e quatro sentidos internos) e seu aparelho apetitivo. Esse apetite sensitivo ordena-se tanto ao que é absolutamente conveniente ou nocivo (e então temos o apetite concupiscível), como também ordena-se a resistir ao que se opõe ao que nos é conveniente (apetite irascível). [4] Daí que alguns temperamentos são ditos irascíveis (o colérico e o melancólico) justamente porque neles as paixões agressivas são as proeminentes; enquanto que outros são ditos concupiscíveis (o sanguíneo e o fleumático) porque neles o que é deleitável e aprazível é mais acentuado. [5]

Os apetites concupiscível e irascível são também sujeitos de virtude, na medida em que, enquanto participantes da razão, são princípio dos atos humanos. Se considerarmos, por exemplo, as quatro virtudes cardeais, vemos que a virtude da prudência aperfeiçoa o racional por essência, enquanto que a justiça aperfeiçoa a vontade. O apetite concupiscível, por sua vez, é aperfeiçoado pela temperança, e o irascível pela fortaleza (ou coragem). [6]

3. A Música e os apetites

A relação da Música com nosso apetite sensitivo parece residir em dois níveis. Em primeiro lugar, no impacto provocado pelo deleite que as músicas nos causam. Em segundo lugar, no modo como as formas musicais expressam e despertam em nós determinadas paixões.

Sobre o deleite da Música podemos apontar que quando alguém o dá demasiadamente a si mesmo, sem a devida restrição ou ordenação racional, esse prazer tende a assumir uma vida própria. Ou seja, haverá uma tendência interna a se procurar ou permitir a si mesmo o prazer também em outras áreas da vida. É como se essa ausência de regulação estética cooperasse a que nos atássemos cada vez mais simplesmente ao deleite sensível, o que progressivamente dificulta que estejamos dispostos, por exemplo, a engajarmo-nos em algo que requer sacrifício. [7]

Sobre a capacidade que a Música tem de expressar ou despertar paixões de alegria, tristeza, ira etc. sabemos que isso se dá por meio de uma associação que fazemos, em parte naturalmente e em parte por familiaridade cultural, entre determinados elementos musicais e certos eventos da realidade, sobretudo aqueles que manifestam determinados estados emocionais. De qualquer forma, o mecanismo parece ser o seguinte: determinados gestos musicais (as subidas melódicas, as rupturas temáticas, as mudanças de harmonia e timbres, figuras rítmicas etc.) induzem representações motoras internas que, se forem características de algum estado emocional, podem favorecer que experimentemos o sentimento emocional correspondente. [8]

4. A Música e o irascível

Algumas músicas parecem mover mais o nosso apetite concupiscível, enquanto outras se dirigem a estimular mais o nosso apetite irascível. Do primeiro tipo são aquelas músicas que tendem a expressar/despertar sentimentos de pura alegria, de amor ou de tristeza, por exemplo. É o caso daquelas formas musicais em que se encontra uma certa doçura cativante nas linhas melódicas e nos acordes, uma ênfase na expressividade das vozes ou dos instrumentos. É o caráter musical a que recorrem os compositores para representarem cenas de caráter lírico e sentimental.

Do segundo tipo são aquelas músicas que tendem a expressar/despertar sentimentos que envolvem força, resistência, luta, determinação etc. São aquelas formas musicais em que os ritmos bem marcados, os timbres metálicos, as grandes texturas e dinâmicas sonoras remetem àquela prontidão de ânimo característica de paixões como a ira ou o medo.

“Diferentes tipos de música tendem a suscitar diferentes tipos de apetites. Uma música move o apetite concupiscível ao amor, tal como quando vemos que uma música move as pessoas a serem mais amorosas. Uma música move o apetite irascível, tal como certas formas de música militar incitam os soldados a lutar mais. Filmes de horror fazem uso de certos tipos de instrumentos e música para suscitar a paixão do medo no público. Esta habilidade artística é uma força psicológica particularmente forte quando ela acompanha os tipos certos de imagens (as imagens podem afetar como nós julgamos a música e a música pode afetar como nós julgamos e reagimos apetitivamente a uma particular imagem).” [9]

5. Dois exemplos contrastantes

Indico abaixo dois exemplos musicais bem contrastantes de um mesmo compositor, Vincenzo Bellini (1801-1835), grande operista italiano. São dois casos em que se nota o aspecto concupiscível e o irascível expressos em música. No primeiro deles temos a famosa Ária “Ah, non credea”, da Ópera “La Sonnambula”. A protagonista da história, Amina (Soprano), está em estado de sonambulismo e lamenta nessa ária o abandono que sofreu por parte de seu noivo. No segundo exemplo temos o Coro “Guerra, guerra”, da Ópera “Norma”, no momento em que os guerreiros druidas são convocados por Norma, sua sacerdotisa, para combaterem violentamente as tropas romanas.

Na Ária temos uma grande linha melódica, peculiaridade de Bellini, na qual se evitam as cadências harmônicas acentuadas durante longos períodos. A instrumentação resume-se, em grande parte, a um simples acompanhamento das cordas (arpejos dos violinos e pizzicatos nos violoncelos e contrabaixos) e a algumas linhas melódicas de madeiras (flauta, oboé etc.) na segunda parte. O texto cantado pela soprano é de caráter poético e nele se compara a alegria do dia de seu noivado com as flores, que, ainda que belas, tão rapidamente se desvanecem.

No Coro, por sua vez, temos o exato oposto. O texto fala de morte, extermínio, vingança, comparando a fúria dos druidas na luta contra os romanos às feras vorazes quando atacam um rebanho. Tem-se a música de forte caráter bélico: tempo binário muito marcado, textura tutti da orquestra, toques militares nos trompetes, instrumentos característicos de bandas militares, além da dinâmica forte e das frases curtas e bem marcadas do Coro.

Coloquei nos dois vídeos o texto Italiano-Português, para facilitar a compreensão. Temos, então, dois exemplos musicais contrastantes: a tristeza da jovem Amina (concupiscível) e a ira dos guerreiros druidas (irascível).


Ária “Ah non credea!”, La Sonnambula, de Vincenzo Bellini.


Coro “Guerra, guerra!”, Norma, de Vincenzo Bellini.

6. A música da coragem

Podemos dizer que uma música será expressiva da coragem quando se enquadrar nas características gerais do apetite irascível, representando e estimulando em nós aqueles atos necessários para lutarmos contra um mal que se apresenta. É o tipo de música que de certa forma, por via natural ou cultural, fala-nos de aventura, heroísmo e vitória. Parece-nos razoável apontar algumas características gerais próprias dessa música:

6.1. MELODIA E HARMONIA

Uso de perfis melódicos ascendentes em modo maior, significando exuberância e triunfo; ou menor, significando a fortaleza necessária para se vencer um mal. Isso em razão da semelhança entre a estrutura sonora e o mundo físico sujeito à lei da gravidade. De fato, vemos que o ato de subir exige maior esforço (ex: subir uma montanha ou uma escada) do que descer. Daí também que a música de caráter mais lamentoso, por oposição, tende a explorar os perfis melódicos descendentes, especialmente em modo menor.

“O efeito de tensão e relaxamento não se deve somente às forças internas da sonoridade, mas também têm uma explicação física: um intervalo ascendente custa ao executante ou ao ouvinte um esforço de acomodação maior que um descendente.” [10]

Alguns exemplos de perfis melódicos ascendentes e sua característica expressiva dentro do vocabulário musical [11]

Temos ainda um outro tipo de construção melódica que oferece uma rápida associação do ouvinte com a ideia de luta e vitória. Trata-se daquelas figurações características dos toques militares, especialmente de trompete, utilizados nas tropas como sinais para diferentes eventos do exército. Muitas vezes os compositores se apropriaram de elementos como esses para fins de representação mesmo dentro da música de concerto.

Exemplos de toques militares para trompete (séculos XVII e XVIII) [12]

Os temas tendem também a ser bastante regulares em termos fraseológicos, sempre dentro de uma estrutura harmônica previsível, mantendo-se no âmbito de acordes diatônicos, evitando-se as modulações a regiões tonais muito distantes da tônica ou efeitos de cromatismo. Visa-se, assim, um efeito de constância e regularidade, próprios à prática da virtude da coragem, que exige perseverar, manter-se na prática do bem mesmo diante de dificuldades internas e externas. Essa maior simplicidade tonal também parece opor-se à maior suavidade ou brandura que uma maior riqueza e sutileza sonora costumam provocar nos ouvintes.

O foco da música de caráter guerreiro ou militar tende a ser o ritmo bem acentuado e a regularidade/recorrência [13] dos temas, em detrimento da variedade harmônica. Ou seja, dentre os elementos musicais, tende-se nesse tipo de música a colocar em primeiro plano as frases melódicas simples e o ritmo acentuado e não a variedade de acordes e sonoridades.

“O sentido musical do auditório tende sempre a perceber apenas um elemento; portanto, quanto
maior é o número dos elementos que atuam simultaneamente, a uma maior contribuição de um
deles corresponde uma contribuição mais ou menos fraca dos demais.” [14]

6.2. RITMO E INSTRUMENTAÇÃO

Diz Aristóteles (Política, Livro III) que qualquer música imita algum caráter e que alguns ritmos transmitem movimento, alguns se referem a movimentos mais nobres e outros a movimentos mais vulgares. Ora, diante dos maiores obstáculos, tais como o perigo da morte corporal, é necessário uma postura física de firmeza, de força dos movimentos, sobretudo diante de um combate. Logo, uma forma musical que se destine a expressar ou despertar tais posturas deve de certa forma também imitá-las.

Daí que as músicas de caráter militar costumam apresentar um ritmo bem marcado, geralmente imitando a marcha lenta (60 a 80 batidas por minuto) ou rápida (120 batidas por minuto) de uma tropa de soldados. Ou ainda o galope de cavalos de batalha. Essa associação não é apenas de ordem natural, mas também cultural. Pela referência aos cavalos de guerra, temos uma associação com tudo aquilo que a antiga Cavalaria medieval nos legou: a Fé, a bravura, a defesa dos mais fracos, os gestos nobres etc. Pela referência às marchas, temos uma associação àqueles valores característicos da vida militar: a disciplina, o treino, as formações e uniformidade de movimentos, os combates etc. [15]

Quanto ao timbre, pode-se dizer que melhor representa e mais eficientemente desperta sentimentos de bravura aqueles instrumentos que produzem sons de grande intensidade e que, por isso mesmo, também estão historicamente associados às bandas militares. Depois da Batalha de Viena em 1683, quando se impediu o avanço do Império Otomano na Europa, algumas práticas musicais turcas foram absorvidas na música militar, tais como os poderosos metais e tambores. Principalmente no século XIX, as bandas militares europeias irão crescer e abranger trompetes, trombones, fagotes, bombardinos, tímpanos e caixas. É basicamente o tipo de música militar que se consolidará até hoje. [16]

Destaco dois desses instrumentos que possuem uma especial conexão com a música guerreira: o trompete e a trompa. Há registros do uso do toque do trompete para fins militares já no século XII. Na Renascença era símbolo da aristocracia e posteriormente tornou-se também comumente usado nas tropas de cavalaria. A trompa, por sua vez, será usada pelos caçadores como uma forma de comunicação dentro das florestas. E sabe-se que a caça é também uma cena de coragem, pois era tradicionalmente um treinamento para a guerra, uma espécie de substituto para as ações militares, já que acostumava o homem ao trabalho e ao sacrifício. [17] A Regra dos Cavaleiros Templários, por exemplo, permitia apenas um tipo de caça: a de leões. [18]

A trompa de caça e o trompete das bandas militares [19]

7. Exemplos musicais

Indico abaixo alguns trechos musicais que bem exemplificam essa incorporação de determinados timbres e padrões rítmico-melódicos com a finalidade de remeter o ouvinte ao ideal de fortaleza, heroísmo e bravura. Em alguns casos, a associação se faz também pelo contexto, tal como em canções e hinos especificamente militares ou quando ligados a uma narrativa de caráter bélico (como em algumas óperas). Em outros casos, a associação se faz de modo estritamente musical, pela simples utilização de tópicas musicais [20] de caça ou guerreiras.

O primeiro exemplo mostra dois trechos de músicas dos cossacos – cuja música folclórica, aliás, é muito boa – e o nosso Hino da Independência. Aspectos como amor à pátria, força contra os inimigos etc. está presente nessas músicas por meio da letra, obviamente, mas também pelos instrumentos e ritmos de caráter marcial. Particularmente digno de nota é a relação da força expressa musicalmente e as expressões/movimentos corporais dos cantores cossacos. É um claro exemplo da íntima relação entre estrutura sonora e representação motora.


Trechos musicais de música cossaca e do Hino da Independência do Brasil

O segundo exemplo contém três trechos de marchas de Joseph Haydn (1732-1809) e dois de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), ou seja, obras do Classicismo vienense. A primeira música é o 4º movimento (Presto) da Sinfonia nº 73 de Haydn (composta em 1782), obra esta que é conhecida como La Chasse, justamente porque no último movimento empregam-se chamadas de trompa, elemento característico da cultura da caça no século XVIII. A segunda música é a Marcha em Mi bemol maior (H. VIII: 3) de Haydn (composta em 1792 para a Royal Society of Musicians, Londres). A terceira música é o 2º movimento (Allegretto) da Sinfonia nº 100 de Haydn (composta em 1793-94), obra essa conhecida como Militar, mesmo já na época do próprio Haydn, em razão do uso que faz de fanfarras e de percussão com caráter marcial. A quarta música é a Marcha em Ré maior K. 237 de Mozart (composta em 1774), geralmente executada juntamente com a Serenata K. 203, chamada Serenata de Colloredo, pois foi provavelmente composta para a comemoração do dia onomástico do Arcebispo de Salzburg, Hieronymus von Colloredo (1732-1812). [21] A quinta e última peça é a famosa Ária Non più andrai, da Ópera Le nozze di Figaro, na qual o personagem Fígaro despede Cherubino e o manda à “glória militar”.


Trechos de marchas de Haydn e Mozart

O terceiro e último exemplo são de algumas obras de caráter marcial de obras do século XIX e início do século XX. Temos duas aberturas de óperas de Gioachino Rossini (1792-1868): La gazza ladra (de 1817) e Guillaume Tell (de 1829). Em seguida, um trecho da Marcha dos Três Magos, do Oratório Christus (composto entre 1862-66), de Franz Liszt (1811-1886). De Richard Wagner (1813-1883) indico um trecho da Huldigungsmarsch (composta em 1864), escrita para banda militar e dedicada ao Rei Luís II da Baviera (1845-1886). As duas últimas peças musicais são marchas que se tornaram muito conhecidas no século XX: (1) a Marcha nº 1 (composta em 1901) das Pomp and Circumstance Marches, do compositor inglês Edward Elgar (1857-1934), obra esta que foi em 1902 utilizada na cerimônia de coroação do Rei Eduardo VII; e (2) a marcha The Stars and Stripes Forever (composta em 1896), de John Philip Sousa (1854-1932), compositor e maestro de banda norte-americano. Tem-se, assim, um panorama geral da utilização dos elementos musicais da marcha desde as aberturas de ópera italianas, passando pelo Romantismo e chegando às bandas militares modernas.


Trechos de marchas nos séculos XIX e XX

8. Proposta de síntese

A virtude da coragem ou fortaleza possui algumas partes chamadas integrais ou potenciais, que são algumas outras virtudes pelas quais nos dirigimos a realizar grandes obras e a resistir a grandes dificuldades. Abaixo indico um quadro com a síntese dessas virtudes e faço um breve paralelo com os elementos musicais que citei como caracterizadores da coragem.

Para realizar grandes obrasPara resistir às dificuldades
VIRTUDE1. Magnanimidade
2. Magnificência
3. Paciência
4. Longanimidade
5. Perseverança
6. Constância
DESCRIÇÃO1. Inclina a empreender obras esplêndidas, dignas de honra em todo gênero de virtudes.
2. Inclina a empreender obras esplêndidas sem vacilar diante do tamanho do trabalho ou dos grandes gastos necessários.
3. Inclina a suportar sem tristeza nem abatimento os padecimentos físicos e morais.
4. Dá ânimo para tender a algo bom que está muito distante (saber aguardar).
5. Inclina a persistir no exercício do bem apesar da dor que seu prolongamento nos cause.
6. Inclina a persistir no exercício do bem apesar dos impedimentos exteriores.
SIGNIFICAÇÃO
MUSICAL
Grandiosidade:
– Dinâmica: forte, grandes contrastes;
– Instrumentação: instrumentos de sopro (metais e madeiras), sonoridades brilhantes e percussão vigorosa;
– Textura: tutti (coros e orquestras).
Regularidade:
– Melodia / Harmonia: Frases, temas e seções regulares e bem individualizadas; tonalidade unificada; [22]
– Ritmo: estável, tempo binário ou quaternário, bem marcado;
– Andamento: análogo ao marchar/cavalgar de tropas.
A Música e a coragem, uma síntese [23]

9. Considerações finais

Como diz o Pe. Ripperger, em condições normais, “mulheres e homens virtuosos tenderão para aquelas formas de música em congruência com as disposições de seus sexos.” [24] Daí que seja conveniente na formação dos rapazes que não se habituem apenas àquelas músicas ou estilos em que predomina o aspecto puramente concupiscível, o sentimentalismo, a brandura. Convém apreciar aquelas formas que, garantido o mérito artístico e estético, também auxiliem na ordenação do apetite irascível. E tais são certamente aquelas músicas que no Ocidente cristão se associaram às ações que envolvem coragem, tais como a guerra e a caça.

Como fechamento ao presente artigo deixo abaixo a narração daquele famoso episódio das Cruzadas, quando o nosso grande herói, Godofredo de Bouillon (1060-1100), o Duque e Defensor do Santo Sepulcro, foi questionado sobre o segredo de sua força física:

“Narravam-se muitas maravilhas sobre a força de Godofredo: haviam-no visto, com um só golpe de espada, cortar a cabeça de um dos maiores camelos. Um emir poderoso, entre os árabes, quis julgar o fato, ele mesmo, e veio pedir ao príncipe cristão que renovasse na sua presença o prodígio. Godofredo assentiu ao pedido do emir, satisfez-lhe a curiosidade e com um só golpe decepou a cabeça de um camelo que lhe haviam trazido. Como os árabes pareciam crer que havia algum encantamento na espada de Godofredo, ele tomou a espada do emir e a cabeça de um segundo camelo rolou na areia. O emir então declarou solenemente que tudo o que lhe haviam dito do chefe dos cristãos era verdadeiro e que jamais homem algum fôra mais digno de governar do que ele. Eu vi, na Igreja do Santo Sepulcro, essa terrível espada, que, ora decepava cabeça de camelos, ora partia e fendia ao meio, gigantes sarracenos.” [25]

Perguntado, porém, sobre o segredo de sua extraordinária força, respondeu o grande cavaleiro que, se tinha tamanha força, era porque suas mãos nunca tinham pecado contra a pureza. Portanto, era a pureza que fazia sua vontade e seu braço fortes. [26]

Que possa a Música servir também à formação dos jovens, moderando o deleite e contribuindo àquela verdadeira força, física e moral, própria dos cavaleiros cristãos.

Nos cum prole pia – benedicat Virgo Maria.

Estátua de Godofredo de Bouillon, em Bruxelas (Bélgica)

Referências

BAS, Giulio. Tratado de la forma musical. Buenos Aires: Ricordi, 1957.

BASTÚS, Joaquín. Historia de los Templarios: relato del origen, privilegios, acciones heroicas y fin de la Orden del Temple. Grandes Maestres y regla de los caballeros templarios. Paris: FV Éditions, 2016 [1834].

BRUCCIANI, John. Os quatro temperamentos. Revista Permanência. Niterói, n. 270, p. 40-101, 2013.

COOKE, Derick. The language of music. Oxford: Oxford University Press, 1973.

GESSINGER, Rafael Koerig. A coragem segundo Tomás de Aquino. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2014.

GOSSETT, Philipp; ASHBROOK, William; BUDDEN, Julianm; LIPPMANN, Friedrich. Mestres da ópera italiana: Rossini, Donizetti, Bellini. Porto Alegre: L&PM, 1989.

HURTADO, Leopoldo. Introduccion a la estética de la música. Buenos Aires: Paidos, 1971.

LARUE, Jan. Análisis del estilo musical: pautas sobre la contribución a la música del sonido, la armonía, la melodía, el ritmo y el crecimiento formal. Barcelona: Labor, 1989.

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PAULI, Evaldo. Estética geral. Florianópolis: Biblioteca Superior de Cultura, s. d.

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ROBINSON, Jenefer; HATTEN, Robert S. Emotions in Music. Music Theory Spectrum. Oxford, v. 34, n. 2, p. 71-106, 2012.

SADIE, Stanley. Mozart. Porto Alegre: L&PM, 1988.

TEIXEIRA, Thiago Plaça. A estética musical em Santo Tomás de Aquino. Curitiba: Appris, 2018.

TOMÁS DE AQUINO, Santo. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2001.

+LAUS DEO VIRGINIQUE MATRI+


Notas:

[1] MARIN, Royo. Teología de la perfección cristiana. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 2012. p. 588, tradução nossa.

[2] Postilla super Psalmos [Comentários aos Salmos], Salmo 32, v. 2. In: TEIXEIRA, Thiago Plaça. A estética musical em Santo Tomás de Aquino. Curitiba: Appris, 2018. p. 35.

[3] Cf. TOMÁS DE AQUINO, Santo. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2001 [II-II, q. 123, a. 2]; GESSINGER, Rafael Koerig. A coragem segundo Tomás de Aquino. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2014.

[4] Cf. TOMÁS DE AQUINO, Santo. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2001 [I, q. 80 a. 2; I, q. 81, a. 2].

[5] BRUCCIANI, John. Os quatro temperamentos. Revista Permanência. Niterói, n. 270, p. 40-101, 2013. p. 45.

[6] Cf. TOMÁS DE AQUINO, Santo. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2001 [I-II, q. 56 a. 4; I-II, q. 61, a. 2].

[7] Cf. RIPPERGER, C. Introduction to the Science of Mental Health. Denton: Sensus Traditionis Press, 2007. p. 587-588.

[8] Cf. ROBINSON, Jenefer; HATTEN, Robert S. Emotions in Music. Music Theory Spectrum. Oxford, v. 34, n. 2, p. 71-106, 2012. p. 87.

[9] RIPPERGER, 2007, p. 586, tradução e grifo nossos.

[10] HURTADO, Leopoldo. Introduccion a la estética de la música. Buenos Aires: Paidos, 1971. p. 84-85, tradução nossa.

[11] COOKE, Derick. The language of music. Oxford: Oxford University Press, 1973. p.115-165.

[12] Cf. MONELLE, Raymond. Musical Topic: Hunt, Military and Pastoral. Bloomington: Indiana University Press, 2006. p. 135.

13] “A recorrência exerce a função de diminuir a dispersividade, reorganizando-a em um todo personificado. Na música se observa quanto consegue a recorrência, colocando a pura sequência rítmica sob o comando de acentos; dentro de uma certa cadência, vão retornando periodicamente certas características, tanto na sequência temporal, como até na maneira de compor os acordes dos tons, ou sempre em maior, ou sempre em menor. A cadência e as escalas retêm o conjunto sonoro, em si dispersivo, num esquema que o personifica, que o torna recognoscível diante de outros obedientes por sua vez às suas respectivas escalas e compassos.” (PAULI, Evaldo. Estética geral. Florianópolis: Biblioteca Superior de Cultura, s. d. p. 144.)

[14] BAS, Giulio. Tratado de la forma musical. Buenos Aires: Ricordi, 1957. p. 106-107, tradução nossa.

[15] MONELLE, 2006, p. 142s.

[16] MONELLE, 2006, p. 117-119.

[17] MONELLE, 2006, p. 36-42; 135-141.

[18] “Que nenhum vá à caça de falcoaria (Regra XLVI) … que nenhum mate as feras com balestra ou arco (Regra XLVII) … que matem sempre aos leões. Porque sem dúvida foram confiados especialmente a vós, e viveis com obrigação de arriscar vossa vida pela do próximo e tirar do mundo os infiéis que perseguem o Filho da Virgem, e do Leão lemos que busca a quem devorar, e que suas garras estão sempre contra todos, é preciso que as de todos estejam contra ele. (Regra XLVIII)” (BASTÚS, Joaquín. Historia de los Templarios: relato del origen, privilegios, acciones heroicas y fin de la Orden del Temple. Grandes Maestres y regla de los caballeros templarios. Paris: FV Éditions, 2016 [1834]. Tradução nossa)

[19] MONELLE, 2006, p. 43; 117.

[20] Tópicas são figuras musicais que o compositor emprega para comunicar um determinado sentido ao ouvinte. Assim, por exemplo, alguns padrões sonoros são empregados para se remeter aos pastores no campo (Ex: siciliana, certos instrumentos de sopro etc.) enquanto outras podem sugerir atitudes aristocráticas (Ex: danças próprias das cortes europeias).

[21] SADIE, Stanley. Mozart. Porto Alegre: L&PM, 1988. p. 42.

[22] Tonalidade unificada é o termo empregado por LaRue para designar o estilo predominante de estrutura harmônica entre 1680 a 1860: hierarquia funcional de acordes centrados em torno de uma única tônica, implicando direcionalidade (relação tensão/resolução) e unificação (acordes em torno de um único centro). (LARUE, Jan. Análisis del estilo musical: pautas sobre la contribución a la música del sonido, la armonía, la melodía, el ritmo y el crecimiento formal. Barcelona: Labor, 1989. p. 41-42)

[23] Para as descrições das virtudes seguimos as definições dadas pelo Pe. Royo Marín (2012, p. 590-595).

[24] RIPPERGER, 2007, p. 592, tradução nossa.

[25] MICHAUD, Joseph-François. História das Cruzadas. São Paulo: Editora das Américas, 1956. v. 2. p. 95-96.

[26] Opinions, Conferences, Sayings and Instructions of Marcellin Champagnat. New York: IVE Press, 2010. p. 202.

Prof. Thiago Plaça Teixeira

O Professor Thiago Plaça Teixeira é Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Paraná, Bacharel em Piano pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná, Mestre e Doutor em Música pela Universidade Federal do Paraná. Foi premiado em concursos de piano e atuou com diversos instrumentistas, cantores e grupos corais em concertos, óperas, festivais e séries de música de câmara. Trabalhou em instituições de ensino superior no Paraná ministrando disciplinas teóricas e práticas. Como pesquisador, direciona seus estudos à música sacra católica, área em que também tem experiência prática atuando como organista.

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