Igreja de Santa Maria in Vallicella (Roma)
Introdução
No dia de hoje, 12 de março de 2022, completam-se exatos 400 anos da canonização de São Filipe Néri (1515-1595). Vinte e sete anos após sua morte, São Filipe foi elevado à honra dos altares pelo Papa Gregório XV no dia 12 de março de 1622, na mesma cerimônia em que também foram canonizados Santo Isidro Lavrador, Santo Inácio de Loyola, São Francisco Xavier e Santa Teresa d’Ávila.
Em um artigo anterior já havíamos tratado mais longamente sobre a vida de São Filipe Néri e especificamente sobre sua importância na História da Música, sobretudo pela sua ênfase no canto das laude e no uso da música como parte dos exercícios espirituais promovidos por ele e seus discípulos na então nascente Congregação do Oratório.
Será tal congregação também uma das principais responsáveis nos séculos seguintes pelo cultivo de um importante gênero musical: o Oratório. Trata-se de um tipo de obra musical que é escrita sobre um libreto (um texto dramático ou narrativo-dramático) com conteúdo religioso (passagens bíblicas, vidas de santos etc.), destinado a cantores solistas, coro e acompanhamento instrumental.
O principal local em Roma em que serão promovidos os espetáculos musicais dos oratórios entre o século XVII e XIX será justamente a igreja dos padres oratorianos: Santa Maria in Vallicella.
A Chiesa Nuova e o Oratorio Filipino
Em 1575 o Papa Gregório XIII reconheceu o grupo de discípulos de São Filipe Néri como uma comunidade oficial, a Congregação do Oratório, e lhes concedeu uma velha igreja, Santa Maria in Vallicella. Ela foi então reconstruída por Filipe, com ajuda de esmolas e contribuições, vindo a ser chamada de Chiesa Nuova. [1]
Durante certo tempo diferentes locais dentro ou ao lado da Chiesa Nuova serviram como oratórios para os exercícios espirituais promovidos pela congregação. Em 1640, contudo, foi finalizado o oratório concebido pelo arquiteto italiano Francesco Borromini (1599-1667), vindo a ser o local em que a Congregação patrocinaria apresentações de oratórios musicais por mais de 250 anos. Comportava cerca de 500 pessoas. [2]
Será o oratório da Chiesa Nuova, juntamente com a Igreja de San Girolamo della Carità e o Oratorio del Santissimo Crocifisso, os principais centro de performance de oratórios em Roma. No século XVII até a virada do século os oratorianos da Chiesa Nuova e os padres de San Girolamo estabeleceram a tradição de se executar oratório musical. Ocorriam dentro de um exercício espiritual conduzido à noite todo domingo ou dia festivo durante os meses de inverno (desde a festa de Todos os Santos, 1º de novembro, até o Domingo de Ramos). [3]
Os exercícios espirituais
O contexto para a apresentação de oratórios na Chiesa Nuova permaneceu sendo o exercício espiritual originado com São Filipe Néri ainda no final do século XVI. O serviço religioso consistia basicamente em:
- uma ou mais orações iniciais (no século XVIII: uma ladainha, a Salve Regina e o Pater noster);
- um sermão recitado de memória por um menino;
- música;
- um sermão de um padre;
- música.
A música incluía inicialmente laude, madrigais espirituais e diálogos. Em meados do século XVII se torna regra o oratório em duas partes, uma antes e outra após o sermão. [4]
A Chiesa Nuova em Scarlatti
Dada essa relevância de São Filipe Néri no desenvolvimento do oratório musical, era comum que alguns compositores e libretistas elaborassem obras tendo por tema a própria vida do Santo. Entre tais obras destaca-se o Oratório San Filippo Neri de Alessandro Scarlatti (1660-1725), para quatro cantores solistas e orquestra.
O tema do libreto é a jornada espiritual de São Filipe como Apóstolo de Roma e tem como personagens o próprio Santo (Tenor) e as três virtudes teologais: Fé (Contralto), Esperança (Mezzo-soprano) e Caridade (Soprano).
Em uma das árias desse Oratório, há uma referência direta à Igreja de Santa Maria in Vallicella, a Chiesa Nuova. Na ária Belle mura a personagem Caridade dirige-se a Filipe e lhe prediz que caberá a ele reconstruir aquela antiga igreja em Vallicella consagrada a Nossa Senhora.
Musicalmente, a ária segue o tradicional formato A-B-A: uma primeira seção A de 19 compassos em sol maior com os três primeiros versos do texto; e uma segunda seção B de 9 compassos na relativa menor (mi menor) com os três últimos versos; em seguida repete-se a seção A incluindo-se ornamentações a critério da cantora.
Abaixo segue o texto e uma gravação da ária feita pelos dois autores do site, Melissa Bergonso e Thiago Plaça Teixeira.
RECITATIVO Picciola valle, che negletta e vile Tra le grandezze sue Roma ancor serba, Quanto più giace umile Più s’alzerà superbo, Allor che, dall’antico e basso teto Sacro a Maria farà sorger Filippo un nuovo Tempio. ÁRIA Belle mura fortunate, Voi che siete destinate Per far pompa di pietà, Non temete di ruina, Che del Cielo la Regina Al cader vi sosterrà. | Pequeno vale, desconhecido e obscuro, ainda fazes parte da grandeza de Roma, quanto mais baixo lá te deitas, tanto mais alto serás elevado, quando do antigo e baixo teto, consagrado a Maria, Filipe fará surgir uma nova igreja. Felizes e belas paredes, vós que estais destinadas a gloriar-se de piedade, Não tenhais medo da ruína, pois a Rainha do Céu irá proteger-te da queda. |
REFERÊNCIAS
SMITHER, Howard E. A History of the Oratorio. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1977. v. 1: The Oratorio in the Baroque Era: Italy, Vienna, Paris Centuries.
SMITHER, Howard E. A History of the Oratorio. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1987. v. 3: The Oratorio in the Classical Era.
TEIXEIRA, Thiago Plaça. São Filipe Néri – Devocionário. Curitiba: Appris, 2019.
+LAUS DEO VIRGINIQUE MATRI+
Notas:
[1] TEIXEIRA, 2019, p. 45-46.
[2] SMITHER, 1977, p. 154-155.
[3] SMITHER, 1977, p. 53.
[4] SMITHER, 1987, p. 11-12.