“Le Nozze di Figaro”: Uma análise do sexteto
Prof. Thiago Plaça Teixeira
1. Introdução
Em seus quase 36 anos de vida, W. A. Mozart (1756-1791) compôs mais de 600 obras musicais, abrangendo praticamente todos os diferentes gêneros em voga em sua época: música sacra, música de câmara, música sinfônica, ópera etc. A sua genialidade é algo já bastante conhecido, mesmo pelo público leigo em Música, e basta mencionar o nome de Mozart para haver uma associação direta com a noção de música de grande qualidade estética. Entretanto, dentro da sua produção musical de altíssima qualidade, há particularmente dois gêneros musicais em que a originalidade de Mozart é mais evidente. Trata-se do (1) concerto para piano e da (2) ópera: “Nunca devemos perder de vista que as óperas e os concertos para piano são as obras em que encontramos Mozart mais de perto; são suas criações mais importantes e são as que representam sua personalidade individual de forma mais íntima e completa.”[1]
No presente artigo tratarei de um importante número musical operístico: o Sexteto do terceiro ato da Ópera Le nozze di Figaro, de Mozart. Consta-nos que o próprio compositor tinha especial apreço por esse sexteto[2]. Para uma melhor compreensão, apresentarei primeiramente algumas informações gerais sobre o contexto em que a Ópera foi composta. Na sequência, tratarei brevemente da Ópera como um todo e do Sexteto em particular.
2. Contexto biográfico
Mozart nasceu em Salzsbug, atualmente pertencente ao território da Áustria, mas que, em tempos passados, foi um Estado eclesiástico do Sacro Império Romano-Germânico. O último Príncipe-Arcebispo a governar Salzburg foi Hieronymus von Colloredo (1732-1812), justamente aquele que veio a ser protetor/patrão de Mozart e seu pai, Leopold.
Na vida de Mozart pode-se distinguir três momentos. O primeiro são os seus anos de menino-prodígio, em que viaja com seu pai pela Europa, apresentando-se em diferentes cortes. Depois temos seu trabalho na corte de Salzburg. Finalmente, a partir de 1781 ele se desliga do vínculo com o Arcebispo e opta por viver em Viena, onde se casa com Constanze Weber em 1782 e onde viverá até sua morte, em 1791.
Apesar das dificuldades financeiras pelas quais passará em Viena, será ali que Mozart alcançará grande fama e também produzirá grande parte de sua obra madura: sinfonias, concertos, o Requiem etc. E é também deste período suas principais óperas, dentre as quais a Le nozze di Figaro.
3. O libreto
Uma das dificuldades que Mozart encontrava na sua produção de óperas era a carência de bons libretos. Mas em Viena ele encontrará o profissional ideal para sua produção operística: o libretista italiano Lorenzo Da Ponte (1749-1838). Desta parceria profissional resultará as três grandes óperas de Mozart: Le nozze di Figaro, Don Giovanni e Cosi fan tute.
Mozart conheceu Da Ponte em 1783 na casa do Barão Wetzlar e a partir deste contato surge o projeto de uma ópera italiana tendo por tema uma peça teatral polêmica da época, Le Mariage de Figaro, do francês Pierre Beaumarchais (1732-1799). Tratava-se de uma comédia que chegou a ser proibida em Paris e Viena, censurada como politicamente subversiva, o que não impedia, contudo, que como ópera pudesse chegar a ser adaptada e encenada.
Nessa mesma época fazia sucesso uma outra ópera italiana, Il barbiere di Siviglia, de Giovanni Paisiello (1740-1816), obra esta baseada também em uma peça de Beaumarchais, Le barbier de Séville. Na verdade, Beaumarchais compôs uma trilogia, com as histórias girando em torno dos mesmos personagens, sendo Le barbier … a primeira e Le Mariage …, a segunda. Certamente Mozart viu no sucesso de Paisiello e na polêmica em torno de Figaro uma oportunidade para realizar a sua obra-prima operística.[3]
4. O enredo
A história de Le nozze di Figaro parte do que ocorreu anteriormente em Le barbier de Séville. Em resumo, tem-se o Conde Almaviva, um nobre espanhol, que consegue se casar com Rosina, uma jovem herdeira que está aos cuidados de um tutor, o Dr. Bartolo, quem, por sua vez, desejava ele próprio casar-se com ela. Há ainda Don Basílio, clérigo e professor de Música, diretamente envolvido nas intrigas. Mas o personagem principal é Fígaro, o barbeiro da cidade, que, conhecendo a todos, propõe-se a auxiliar o Conde. Quando se inicia Le nozze di Figaro, o Conde e Rosina estão já casados há algum tempo, sendo ela agora a Condessa Almaviva. Fígaro, por sua vez, tornou-se o valete do Conde e está noivo de Susanna, uma jovem serva da Condessa.
A história agora se centra no interesse do Conde por Susanna e tem como contexto a abolição que ele fez do jus primae noctis (lendário e falso direito do senhor feudal à primeira noite com uma serva sua que se casava), mas do qual pretende voltar a fazer uso no caso particular de Susanna.
5. Atos 1 e 2
Mozart e Da Ponte viram que a adaptação da peça de Beaumarchais resultava em uma ópera cômica mais longa que o usual. De fato, temos aqui quatro atos, ao invés dos dois ou três atos que eram comuns na época. No primeiro ato, a ópera se inicia com Fígaro e Susanna preparando-se para o casamento a ser realizado naquele mesmo dia, mas também com a preocupação sobre o Conde procurar se valer de seu “direito”. Ainda no ambiente do castelo do Conde, surge Cherubino, o jovem pajem, que, pelos incômodos que está causando às mulheres, é mandado pelo patrão ao serviço militar. Em paralelo, há ainda Marcellina, que é ajudada por Bartolo quanto a um suposto contrato do qual resultaria uma grande dívida de Fígaro com ela.
No segundo ato, a Condessa é apresentada como a mulher introspectiva e que sofre por estar abandonada pelo esposo. Também é aqui que se elabora um plano de Fígaro e Susanna, com o apoio da Condessa, para se livrarem da indesejada situação frente ao Conde. Após vários desentendimentos, encerra-se o ato com a chegada de Marcellina e Bartolo, acompanhados por Don Basílio, que pedem ao Conde o julgamento do caso referente à dívida de Fígaro.
6. Atos 3 e 4
No terceiro ato, o caso é de fato trazido ao Conde para julgamento. Fígaro é, então, condenado a se casar com Marcellina, uma vez que não tem condições de pagar a dívida, mas imediatamente em seguida se descobre que Fígaro é, na verdade, o filho natural de Marcellina e Bartolo, que decidem também legalizar sua união. É nesse momento que ocorre o famoso Sexteto. Ainda nesse ato tem-se a Condessa ditando uma carta a Susanna para marcar um encontro com o Conde naquela noite, mas ao qual ela mesma irá, vestida de Susanna. Encerra-se com o duplo casamento (Fígaro-Susanna, Bartolo-Marcellina), dando ocasião a uma dança, durante a qual Susanna entrega secretamente a carta ao Conde.
No quarto ato, passado no jardim do castelo à noite, Fígaro descobre que Susanna terá um encontro com o Conde, mas ignora que se trata apenas de um plano dela com a Condessa e de que elas trocarão de identidade. O Conde tem seu encontro amoroso com “Susanna” (a própria esposa), mas também flagra o encontro amoroso de Fígaro com a “Condessa” (Susanna). Ao final, as identidades são reveladas, o Conde confessa seu erro, é perdoado pela Condessa e a ópera se encerra com o costumeiro coro final de júbilo.[4]
7. O sexteto
O sexteto do terceiro ato tem como personagens: Conde, Don Curzio (o juiz), Marcellina, Bartolo, Fígaro e Susanna. É o momento em que se revela que Fígaro é filho de Marcellina e Bartolo.
Para o antigo frequentador de óperas o aspecto central de Figaro era Voi che sapete, e apenas de modo secundário viria Dove sono, o “dueto da carta”, e Deh vieni, com Non più andrai como uma concessão ao sexo masculino. Eu gostaria de sugerir que o momento supremo da ópera é o sexteto do Ato 3. Não posso pensar em qualquer outro conjunto vocal em qualquer outra ópera que alcance – e unicamente por meio musicais – a força dramática e a comicidade de “Sua madre, sua madre” passando de uma voz para outra. E há muitos detalhes saborosos por detrás – a genialidade da primeira frase de Marcellina, as exclamações absurdamente arrebatadoras, com o desconcerto confuso do Conde e de Don Curzio ao fundo; então a entrada repentina de Susanna, sua completa incompreensão da situação, as ridiculamente trabalhosas explicações a ela, e, finalmente, a encantadora nova melodia da última seção com o Conde e Curzio novamente desabafando sua fúria enquanto o restante faz uma pausa para respirar.[5]
8. Cena-música no sexteto
Também Kermann destaca o dinamismo cênico-musical conseguido por Mozart neste sexteto:
No Terceiro Ato, quando Don Bartolo e Marcellina descobrem que Fígaro é o seu bastardo há muito perdido, e finalmente se casam felizes, sem maiores preocupações com o contrato de casamento entre Marcellina e Fígaro … Graças ao senso do burlesco de Beaumarchais, é uma cena hilariante; graças à música de Mozart, é também uma cena que possui uma estranha beleza. O êxtase cômico e comovedor dos velhos ao descobrir seu “pequeno Rafaelo” é contrastado com a incompreensão de Susanna e a exasperação do Conde, e na última seção do sexteto harmonias cálidas sugerem uma serenidade nos relacionamentos humanos que não tivera antes qualquer indicação. Como personalidade, Bartolo e Marcellina são esboçados apenas superficialmente – com a firmeza estritamente necessária para estabelecer a questão dramática essencial de Mozart, que era, já tão cedo, dar uma poderosa indicação de salvação para pessoas tão separadas quanto o Conde e a Condessa. O sexteto também abre uma subtrama significativa mostrando os primeiros sinais de atrito no pequeno ninho de amor de Fígaro e Susanna: quando o vê abraçando Marcellina ela se inflama e soca-lhe as orelhas, no melhor estilo da comedia dell’arte. O subsequente desenvolvimento deste tema faz mais do que fornecer situações cômicas extras e complicar o desenlace; ele dá apoio ao drama central, estabelecendo uma analogia manifesta entre Fígaro e Susanna por um lado, e entre o Conde e a Condessa, por outro.”[6]
9. Forma musical do sexteto
Segundo Rosen, a capacidade de adaptação do estilo de Sonata[7] à ópera fica bem manifesto justamente nesse Sexteto de Le nozze di Figaro. Esse número musical tem como forma a de um movimento lento da forma sonata[8]: sem seção de desenvolvimento, com recapitulação que começa na tônica, ainda que o segundo grupo da recapitulação apareça ressaltado e intensificado a ponto de surtir algum dos efeitos próprios do desenvolvimento.[9]
Na sequência apresento, com o respectivos vídeos ilustrativos, a análise que Rosen desenvolve sobre o Sexteto.[10]
A primeira seção, na tônica (Fá maior), possui três temas principais. O primeiro tema (A) é o da expressão de júbilo de Marcellina ao descobrir que Fígaro é seu filho, perdido há muito tempo:
Vídeo 01
Em seguida, Bartolo canta uma variante desse primeiro tema e apresenta-se, então, o segundo tema (B), no qual Don Curzio e o Conde expressam sua indignação diante da revelação:
Vídeo 02
O terceiro tema (C) é repartido entre Marcellina, Fígaro e Bartolo. A base motívica é o intervalo de trítono descendente:
Vídeo 03
Esta primeira seção, com seus três temas, encerra-se como uma cadência na dominante (Dó maior). É o momento em que Susanna entra com o dinheiro para pagar a dívida de Fígaro, o que agora não é mais necessário. Tem-se, assim, o que comumente se chama de passagem ponte na exposição da forma-sonata. Mozart aproveita o aumento de tensão harmônica, característica da passagem da tônica para a dominante, justamente no trecho da cena em que se precisa expressar a ignorância de Susanna quanto ao que está ocorrendo:
Vídeo 04
Apresenta-se parte do tema C no momento em que Marcellina, Fígaro e Bartolo estão confusos pela descoberta. Trata-se de um recurso comum em Haydn e Mozart a reaparição do primeiro grupo temático:
Vídeo 05
Em seguida surge uma dissonância com a dominante menor (Dó menor), trecho em que Susanna está irada ao ver Fígaro beijar sua mãe, Marcellina. Pode-se considerar como sendo um quarto tema (D):
Vídeo 06
Fígaro tenta acalmar Susanna. Nos violinos surge, então, um novo motivo, procedente dos temas A e C do primeiro grupo temático. Para expressar a indignação de Susanna há um novo tema (E), que conclui com uma cadência na dominante (Dó maior), procedimento comum em uma exposição de sonata:
Vídeos 07 e 08
Segundo Rosen, a recapitulação exigia certo engenho por parte do compositor, pois se fazia necessário coordenar a simetria própria da forma musical com a situação e o texto do libreto. No Sexteto de Figaro, Mozart inicia a seção de recapitulação com o tema A na tônica (Fá maior) e, na cena, tem-se Marcellina explicando a situação para a enfurecida Susanna. A melodia original do tema A é executado pelos sopros, ficando a linha vocal como uma espécie de ornamentação do motivo principal. Na exposição tinha-se em seguida o tema B, no qual Curzio e o Conde expressavam sua consternação diante da situação que ocorria. Agora, na recapitulação, Mozart utiliza uma variante do tema B para expressar a confusão de Susanna:
Vídeos 09, 10 e 11
Encerra-se o sexteto com uma seção em que todos cantam juntos, expressando júbilo, com exceção de Curzio e do Conde. Susanna tem aqui uma nova linha melódica, lírica e expressiva, o que recorda de certa forma o tema C da exposição. Há ainda uma passagem para a homônima (Fá menor), o que equivale harmonicamente à marcha para Dó menor da exposição (tema D):
Vídeo 12
10. Conclusão
Ficam evidentes, portanto, a estruturação harmônica e as proporções tão valorizadas pelos compositores clássicos, Mozart e Haydn, em suas obras. Também se vê com clareza a habilidade de Mozart em unir a trama cênica com a música, ou, em outras palavras, em representar de modo efetivamente musical o dinamismo próprio da cena.
Deixo aqui na sequência o vídeo completo do Sexteto de Le nozze di Figaro em uma gravação de 1976 com a Orquestra Filarmônica de Viena (regência de Karl Böhm) e cantores líricos famosos da época: Mirella Freni, Herman Prey, Dietrich Fischer-Dieskau e Kiri Te Kanawa.
Vídeo 13
Referências
DENT, Edward. Mozart’s Operas: A Critical Study. London: Oxford University Press, 1970.
KERMANN, Joseph. A ópera como drama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
ROSEN, Charles. El estilo clásico. Madrid: Alianza, 2009.
+LAUS DEO VIRGINIQUE MATRI+
[1] DENT, 1970, p. 88, tradução nossa.
[2] Cf. DENT, 1970; ROSEN, 2009.
[3] Cf. DENT, 1970, p. 90-97.
[4] DENT, 1970, p. 98-101.
[5] DENT, 1970, p. 112, tradução nossa.
[6] KERMANN, 1990, p. 115-116, grifo nosso.
[7] Em síntese, diz-se “Forma Sonata” aquela organização musical em que há: (1) uma seção de Exposição (geralmente com dois grupos temáticos) que caminha harmonicamente da tônica para a dominante; (2) uma seção de Desenvolvimento, em que há uma elaboração em torno de algum dos temas da Exposição; e, enfim, (3) uma seção de Reexposição, em que os temas da Exposição são reapresentados, mas com a diferença de que há uma resolução harmônica, na tônica.
[8] Rosen distingue vários tipos de “forma sonata”.
[9] ROSEN, 2009, p. 335.
[10] Cf. ROSEN, p. 335-340.