São Filipe Néri e a Música
Neste artigo tratarei de um Santo a quem minha família tem especial devoção: São Filipe Néri, o Apóstolo de Roma. A ele remonta o nascimento de um dos mais importantes gêneros musicais que se desenvolveram na era barroca, o Oratório. [1]
1. QUEM FOI SÃO FILIPE NÉRI
Nascimento e infância
Nasceu Filipe Néri em Florença (Itália) a 21 de julho de 1515, filho de Francesco Néri, tabelião, e de Lucrezia di Masciano. Foi batizado já no dia seguinte ao seu nascimento. Teve três irmãos: Caterina, Elisabetta e Antônio. Sabe-se que desde criança Filipe demonstrava grande bondade de coração, sendo chamado, em família, de Pippo buono (“o bom Filipinho”). Fez seus estudos com os dominicanos do convento de São Marcos, em Florença, e lá também recebeu a primeira formação cristã. Por volta dos 18 anos mudou-se para San Germano, onde passou a viver como aprendiz de vendedor, com seu tio Rômulo, um abastado comerciante, de quem deveria herdar. Contudo Filipe sentiu-se chamado a uma vida mais perfeita e, para melhor servir a Deus, deixou tudo e partiu para Roma. [2]
Roma
Na Cidade Eterna, Filipe foi morar com um conterrâneo seu e se mantinha por meio da tarefa que assumiu de preceptor dos dois filhos de seu hospedeiro. Levava uma vida de eremita e, ao mesmo tempo, também estudava Filosofia e Teologia. Durante cerca de dez anos entregou-se à oração, à leitura da Sagrada Escritura e de alguns autores espirituais, bem como à meditação da Paixão de Cristo, seja em alguma igreja romana, seja nas catacumbas de São Sebastião, local que especialmente lhe agradava. Estabeleceu para si mesmo o costume, mais tarde expandido para multidões inteiras, de visitar as sete grandes basílicas de Roma. [3]
Pentecostes de Filipe
Em 1544, à idade de 29 anos, ocorreu o episódio conhecido como “Pentecostes de Filipe”. Estando Filipe Néri uma determinada noite em oração nas catacumbas de São Sebastião, viu ele uma bola de fogo que lhe entrava pela boca e lhe dilatava o peito de tal forma que pensou que morreria. Tendo caído ao chão, gritou: “Basta, Senhor, basta!”. Desse acontecimento resultou a Filipe uma série de consequências extraordinárias:
- palpitação e tremor por todo o corpo, mas somente quando se ocupava das coisas divinas (na oração, ao rezar Missa, ao comungar, ao pregar etc.);
- calor interior intenso, não se alterando nem mesmo pelos dias mais rigorosos do inverno de Roma;
- dilatação peitoral do tamanho aproximado de um punho à altura do coração, algo inclusive verificado pelo médico que fez autópsia no corpo do santo, constatando-se, então, que a quarta e a quinta costela estavam completamente rompidas pelo meio, de tal forma que as duas extremidades estavam tão distanciadas entre si que não puderam unir-se durante cinquenta anos, isto é, desde o ocorrido até a morte do santo. [4]
Caridade com o próximo
Não somente ao estudo, à oração e à mortificação extraordinária dedicou-se Filipe, mas também às obras de caridade para com o próximo. Com sua amabilidade natural, aperfeiçoada pela graça divina, percorria ele ruas, praças, escolas e os lugares mais frequentados de Roma, para conquistar almas para Deus. Nesse seu frutuoso apostolado, conseguiu inúmeras conversões e vocações religiosas para as Ordens e Congregações da época, ainda que ele mesmo continuasse sendo apenas leigo. Foi também assíduo nas obras de misericórdia corporais. Dedicou-se, sobretudo, ao cuidado dos enfermos, visitando-os nos hospitais, servindo-os dia e noite em todas as necessidades, obra esta que não só provocava admiração de todos, mas também se tornaria exemplo seguido por muitos clérigos, leigos e nobres. [5]
Ordenação sacerdotal
O primeiro confessor e diretor espiritual de Filipe Néri foi o Pe. Persiano Rosa, um padre de vida santa que habitava na igreja de San Girolamo della Carità, em Roma. Juntamente com tal sacerdote, fundou Filipe, em 1548, a Confraternidade da Santíssima Trindade dos Peregrinos e Convalescentes, na igreja de San Salvatore del Campo. Reuniam-se pessoas simples, mas piedosas, que se dedicavam a exercícios espirituais e, mais tarde, também ao atendimento dos pobres e convalescentes entre a multidão de peregrinos que iam a Roma. Foi também o Pe. Persiano Rosa quem conduziu Filipe ao sacerdócio. Depois de alguns rápidos estudos, Filipe Néri, por obediência a seu confessor, foi ordenado sacerdote em 23 de maio de 1551, aos 36 anos de idade, na igreja de San Tommaso in Parione. A partir de sua ordenação, Filipe passou a residir em uma casa ao lado da Igreja de San Girolamo, em Roma. Nessa residência moravam clérigos seculares, que não eram submetidos a uma Regra, e ali permaneceu Filipe por 32 anos. [6]
Santo sacerdote
Como sacerdote, nutria Filipe um ardente amor pela Santíssima Eucaristia, celebrando Missa com abrasado fervor todos os dias e sendo um verdadeiro apóstolo da Confissão. Desde o começo da manhã colocava-se à disposição dos penitentes e, tendo sua fama se espalhado por toda Roma, chegou a atender dezenas de milhares de pessoas. Tal como ocorreria com o Cura d’Ars no século XIX e também com outros santos sacerdotes ao longo da história da Santa Igreja, também o Pe. Filipe Néri recebeu especiais dons celestes para seu ofício de confessor, particularmente o de conhecer os pecados das pessoas antes mesmos de se acusarem deles. Costumava dirigir as almas com grande caridade e também, muitas vezes, com bom humor. Se consigo mesmo era severo em tudo, para os outros era bondoso e amável, sobretudo com os pecadores que a ele recorriam. [7]
As reuniões do Oratório
Vendo a necessidade de formar mais amplamente os fiéis que o procuravam, passou Filipe Néri a reuni-los, inicialmente em sua residência, em San Girolamo, para conversar sobre temas espirituais. Entre outras coisas, davam-se conselhos, faziam-se leituras e comentários sobre algum livro de piedade, discorria-se sobre episódios da história da Igreja ou da vida dos santos, sobre questões de virtude ou de doutrina, executavam-se músicas piedosas etc. Após a reunião, o grupo ainda saía para atender doentes em algum hospital ou visitar o Santíssimo Sacramento em alguma igreja. Por volta de 1557, foi preciso transferir os encontros para uma capela lateral da igreja de San Girolamo adaptada para esse fim: era, então, o “Oratório”, nome que designaria a futura Congregação. Procurava Filipe, com os diversos exercícios piedosos que promovia, afastar seus filhos espirituais, sobretudo os jovens, dos perigos e seduções do mundo, instruí-los e encaminhá-los na prática das virtudes cristãs. Dessas reuniões, inicialmente frequentadas por leigos, participaram mais tarde intelectuais, bispos e cardeais, entre os quais os futuros Papas Gregório XIII e Clemente VIII. [8]
Os louváveis exercícios promovidos por Filipe desde aproximadamente 1552, que só abrasavam a piedade dos fiéis, suscitaram a inveja dos perversos e uma série de calúnias e perseguições contra o santo. Suportou-as sempre com heroica paciência, humildade e profunda confiança na Providência Divina. [9]
A Chiesa Nuova
Por volta de 1563-64, quando Filipe acabava de se curar de uma grave doença que quase o levou à morte, a paróquia de San Giovanni dei Fiorentini (Roma) foi confiada aos seus discípulos. Foi nessa igreja que pela primeira vez seus filhos espirituais passaram a viver em comunidade, seguindo algumas poucas regras. Em 1574, visando a conseguir uma igreja própria para os oratorianos, Filipe saiu à procura de um lugar. O Papa Gregório XIII ofereceu-lhe, então, a igreja de Santa Maria in Vallicella, que foi reconstruída a partir de 1575 por Filipe, com ajuda de esmolas e contribuições, vindo a ser chamada de Chiesa Nuova. No ano de 1575, a Congregação do Oratório foi erigida canonicamente e passou, desde então, a ser favorecida pelo Papado. Em 1577, os membros do Oratório se mudaram para a Chiesa Nuova, mas Filipe permaneceu em sua antiga casa, em San Girolamo, de onde só saiu em 1583, a pedido do Papa, mudando-se, então, para a casa central dos oratorianos, onde ficou até o fim da vida. [10]
Morte e Canonização
São Filipe Néri morreu em 26 de maio de 1595, na noite após a festa do Corpo de Deus. Foi canonizado 27 anos depois, a 12 de março de 1622, pelo Papa Gregório XV, que, na mesma cerimônia, elevou aos altares também outros quatro novos santos: Santo Isidro Lavrador, Santo Inácio de Loyola, São Francisco Xavier e Santa Teresa d’Ávila.
A todos quanto o conheceram, deixou São Filipe Néri exemplos extraordinários de zelo pela Fé, caridade ardente, alegria e bom humor, humildade, bondade e obediência. Por ter vivido rodeado de eventos sobrenaturais, como curas, profecias, conversões extraordinárias etc., São Filipe Néri teve a fama de taumaturgo, e pelo seu intenso trabalho na Cidade Eterna ficou conhecido como o Apóstolo de Roma. [11]
2. AS REUNIÕES DO ORATÓRIO
O início
Como já foi dito, a Congregação do Oratório teve sua origem nas reuniões para instrução espiritual que São Filipe Néri promovia em um oratório construído sobre uma das naves da Igreja de S. Girolamo della Carità em Roma. [12] O termo “oratório” inicialmente se referia tanto à instituição em si, como também ao espaço físico de oração e às reuniões ou exercícios espirituais:
Um ano depois de sua mudança para San Girolamo, Filipe começou a atrair um pequeno grupo de seis a oito leigos que chegavam a seus aposentos no início da tarde para participar de discussões religiosas informais e rezar juntos. Em 1554, a participação nessas reuniões havia aumentado consideravelmente; como Filipe precisava de alojamentos maiores para o grupo, ele foi autorizado a usar um andar superior, em um corredor lateral da igreja. Esse espaço foi reformado como um oratório, ou uma sala de oração. É difícil estimar a capacidade de assentos do salão, uma vez que a igreja foi drasticamente remodelada na segunda metade do século XVII, mas parece ter acomodado de 150 a 200 pessoas. Nos exercícios espirituais desse salão, Filipe introduziu pela primeira vez a prática de cantar “laude”, um costume que ele sem dúvida trazia de sua infância em Florença. A partir de pelo menos 1554, pode-se falar do oratório como instituição. Filipe e seus seguidores passaram a usar a palavra italiana “oratorio” para se referir à instituição, bem como à sala de oração e às reuniões, ou “exercícios espirituais”, como também eram chamados, que aconteciam na sala. Assim, eles geralmente falavam em “realizar o oratório” em um determinado dia ou em um determinado momento, em realizar exercícios espirituais “no oratório” e na associação de padres e irmãos que constituíam “o oratório”. A grande organização que acabou se desenvolvendo foi oficialmente chamada de Congregação do Oratório, já que o oratório, em todos os sentidos, era seu trabalho principal, sua maneira de efetuar a reforma dentro da Igreja. Os membros da organização, principalmente padres, eram chamados Oratorianos ou Padres do oratório. [13]
Os exercícios espirituais
Os exercícios espirituais promovidos por S. Filipe Néri começaram como uma continuação informal da direção espiritual que ele dava aos fiéis no Confessionário. Cesare Baronio (1538-1607), um dos primeiros discípulos de S. Filipe e futuro Cardeal da Santa Igreja, assim descreve como eram os primeiros encontros:
Primeiramente havia uma pequena oração silenciosa, e depois um irmão lia algum livro espiritual. Durante essa leitura, geralmente o próprio pai [Filipe Neri], que supervisionava tudo, discutia o que era lido, explicando-o, amplificando-o e imprimindo-o no coração dos ouvintes. E, às vezes, ele perguntava a outros sobre isso, quase como um diálogo; e esse exercício duraria talvez uma hora, para o grande prazer de todos. Depois disso, um irmão subia, por sua vez, a uma cadeira que foi levantada por alguns degraus, e sem nenhum ornamento de linguagem, ele pregava um sermão tecido sobre a vida aprovada dos Santos, sobre algum trecho das Escrituras, e de algum lugar dos escritos do Padres. Depois dele seguiria um segundo [irmão], e ele pregaria outro sermão no mesmo estilo, mas sobre um assunto diferente. Finalmente chegava o terceiro, que falaria sobre a história da Igreja, de acordo com a ordem do tempo. Cada [sermão] durava meia hora. Isso feito, para a maravilhosa utilidade e consolo dos ouvintes, uma lauda espiritual era cantada. E depois de mais algumas orações, o exercício era concluído. Quando as coisas foram organizadas dessa maneira e estabelecidas com a autoridade do Papa, parecia que, tanto quanto os dias atuais permitem, o antigo modo apostólico havia sido renovado. [14]
Oratório vespertino
Por volta de 1570, os Oratorianos desenvolveram tipos de exercícios espirituais para diferentes horas do dia, diferentes estações e para grupos distintos. Nessa época já ocorre um grande aumento do número de participantes, incluindo agora prelados, nobres e importantes pregadores. Aos domingos e festas, após as Vésperas, ocorria o chamado oratório vespertino. Nas estações mais quentes, as Vésperas eram seguidas por um sermão na igreja e, em seguida, ia-se para um local ao ar livre em Roma, onde se faziam sermões, precedidos e seguidos por laude. No inverno o oratório vespertino era realizado no oratório e talvez na Chiesa Nuova. Muito provavelmente seguia a mesma estrutura de como ocorria no verão, mas com maior restrição devido à capacidade do local. [15]
O próprio S. Filipe assim descrevia as reuniões em uma carta ao Papa:
Nossa Congregação, além de [manter] os sermões espirituais diárias que ocorrem em nosso Oratório, acostumava-se nos dias de festa a realizar os mesmos exercícios como uma espécie de recreação em várias partes de Roma; e para mais atrair todo tipo de pessoa, entre as homilias dos sacerdotes que estamos acostumados a ter, alguns meninos recitavam alguns sermões edificantes, e é visto que nosso Senhor é servido com cada uma dessas redes para pescar almas. No ano passado, esses exercícios foram continuados no pátio do Minerva [a igreja dos dominicanos, Santa Maria sopra Minerva] com uma multidão muito maior do que o habitual durante todo o verão, e este ano a mesma coisa foi feita continuamente, enquanto durou o bom tempo, na vinha da Compagnia de ‘Napoletani, com uma multidão de talvez três ou quatro mil pessoas; e agora com o mesmo atendimento foi transferido para a igreja dos brescianos na rua Giulia. A prática mostrou que, ao inserir o prazer da música espiritual e a simplicidade e pureza dos meninos nos exercícios sérios realizados por pessoas sérias, atraímos muito mais pessoas de todos os tipos. [16]
Nesses primeiros tempos a parte musical centrava-se, sobretudo, na antiga tradição das laude.
3. A LAUDE
A lauda monofônica
A lauda era o principal gênero de música religiosa não-litúrgica na Itália durante o final da Idade Média e na Renascença. Surgiu na Itália central durante o século XIII, dentro do contexto da ação missionária das ordens mendicantes (Dominicanos e Franciscanos). Há raízes dela já, por exemplo, no “Cântico do Sol”, de S. Francisco de Assis (1182-1226). Inicialmente, a lauda era uma forma musical monofônica em vernáculo e que, juntamente com os sermões feitos pelos frades, visava contribuir à piedade popular (principalmente incitando o louvor a Deus e a penitência), especialmente a devoção a Nossa Senhora. Durante os séculos XIV e XV a tradição de se cantar laude será mantida sobretudo em ofícios para-litúrgicos de confraternidades de leigos, como os laudesi em cidades como Siena e principalmente Florença. [17]
Alguns textos de lauda eram em estilo lírico e reflexivo, enquanto outras já possuíam elementos narrativos e dramáticos. Muitas das composições são anônimas, mas se conhece algumas com autoria de Jacopone da Todi (1228-1306), por exemplo. Chegaram a nós alguns manuscritos (de Cortona e de Florença) dos séculos XIII-XIV, com mais de 100 textos. Aproximadamente 1/4 deles apresentava elementos narrativos, referentes a cenas como: Anunciação, Natividade, Paixão de Cristo e vidas de Santos. A lauda não era encenada e foi muito popular em Florença, terra natal de S. Filipe Néri, tanto como forma musical, como também como composição poética. [18]
A lauda polifônica
No século XV adota-se também a polifonia (três ou quatro vozes) no canto de lauda. Além dos serviços específicos das confraternidades, também passa a ser adotada pela piedade popular em geral e pelo clero. Tal interesse pela lauda se dá como uma alternativa à crescente complexidade das formas musicais polifônicas. A primeira edição de laude, todas elas polifônicas, é a coleção Laude, libro secondo (Veneza: Petrucci, 1507).
Inicialmente de texto com forma mais livre, a lauda medieval irá posteriormente apresentar uma adaptação do esquema poético da ballata (música de dança com refrão coral). O esquema padrão será então de um refrão coral com dois versos em rima (repetidos após cada estrofe) e uma estrofe para voz solista em quatro versos. A parte estritamente musical das laude apresentava diferentes características: influência de cantos populares, de estruturas de litanias ou de hinos, de canções dos trovadores, modos eclesiásticos e até mesmo uma incipiente tonalidade maior-menor. [19]
Os textos eram umas vezes em italiano, outras em latim; a música era a quatro vozes, sendo as melodias muitas vezes extraídas de canções profanas. As “laude” eram, geralmente, cantadas em reuniões semipúblicas de crentes, quer “a cappella”, que, possivelmente, com instrumentos tocando as três vozes mais graves. Tal como as “frottole, as “laude” era, na sua maioria, silábicas, homofônicas e ritmicamente regulares, com a melodia quase sempre situada na voz mais aguda. Na simplicidade de suas harmonias, as “laude” conseguiam muitas vezes ser extremamente expressivas. Próximas no espírito e no propósito da música litúrgica, as “laude” raramente incorporavam, porém, temas gregorianos e não revelam grande influência do estilo musical sacro franco-flamengo. Pelo contrário, foram os compositores dos Países Baixos que em Itália se aperceberam, ao ouvirem as “laude” e as “frottole”, da eficácia da escrita homofônica e silábica; as passagens declamatórias da música de muitos compositores dos finais do século XVI (Palestrina e Victoria, por exemplo) derivam, provavelmente, pelo menos em parte, da tradição da “lauda”. [20]
Será esse tipo de lauda que será amplamente utilizado nas reuniões do Oratório na segunda metade do século XVI.
Compositores no Oratório
O oratório vespertino incluía mais música – e também mais elaborada – que nos dias de semana. Algumas edições de laude nos anos 1560-80 indicam que já se empregavam músicos treinados e também música mais elaborada em tais ocasiões. É justamente para o oratório vespertino que os melhores músicos de Roma iriam se apresentar gratuitamente por muitos anos. Giovanni Animuccia (1514-1571), compatriota de São Filipe, estabeleceu-se desde 1551 em Roma e sucedeu a Palestrina (1525-1594) na Cappella Giulia em 1555. Provavelmente já a partir da década de 1550 passa a dirigir a música no Oratório até sua morte em 1571. Animuccia publicou dois livros de Laudi spirituali, de certa forma já preludiando a técnica da monodia acompanhada, a qual seria fundamental para o desenvolvimento posterior do gênero musical Oratório. [21]
Entre os compositores que colaboraram com a música do Oratório de S. FIlipe estão também o próprio Palestrina e Tomás Luis de Victoria (1548-1611), famoso compositor espanhol que foi também capelão em San Girolamo della Carità entre 1578 e 1585, vivendo, inclusive, na mesma casa que S. Filipe habitava na época. Outro nome importante foi Francesco Soto de Langa (1534-1619), espanhol e soprano na capela papal, que viveu com os oratorianos a partir de 1566 e se tornou um em 1571, contribuindo como maestro di cappella (1571-96), cantor, compositor e compilador de laude para publicação. [22]
A lauda no Oratório
A tradição de cantar laude em exercícios devocionais era forte em Florença, terra natal de S. Filipe, e cultivada pelos dominicanos de San Marco, onde ele recebeu parte de sua educação. E, de fato, alguns textos de lauda usados por Animuccia eram de origem florentina. Sabe-se também que S. Filipe era familiarizado com a lauda tanto renascentista como medieval, pois ele próprio possuía uma cópia da Laude di Frate Jacopone da Todi, incluindo-o entre os escritos espirituais que eram lidos e comentados nos exercícios diários no Oratório.
Entre 1563 e 1600 três séries de livros com lauda foram impressos para uso no Oratório de São Filipe Néri. Uma série de Animuccia (três livros, série 1); uma de Alessandro Gardano (série 2) e outra de Giovenale Ancina (1545-1604), (série 3). São nove diferentes livros – com quatro reimpressões -, incluindo aproximadamente 500 diferentes textos e pouco menos de composições. Provavelmente Soto foi o compositor das laude na série 2. [23]
Texto e música das laude
Os textos de lauda são geralmente anônimos, mas muitos vinham de preexistentes livros escritos por poetas conhecidos. Tais textos continuavam a tradição medieval de orações em forma de poemas, meditações, invocações, exortações, descrição de cenas sagradas, narrativas, monólogos, diálogos e várias misturas desse tipo. A maioria era em italiano (alguns em Latim e Espanhol), entre 3 a 17 estrofes cantadas com a mesma música (versos com 7 a 8 sílabas). Predominavam as formas com refrão.
A estrutura musical das laude empregadas no Oratório no século XVI era normalmente binária, com ambas as seções repetidas. Tratava-se de um estilo próximo aos das formas populares leves da época: canzonetta, balleto ou villanella (ou mesmo o madrigal e o moteto). A melodia principal na voz superior, geralmente acompanhada por duas ou três vozes inferiores, o que era apropriado para ser cantado pela congregação. Às vezes ocorria um estilo mais elaborado, provavelmente destinado a músicos profissionais no oratório vespertino. Inclusive, o segundo livro de Animuccia consta de peças mais elaboradas justamente porque se destinava a essas reuniões, nas quais prelados e nobres passavam a frequentar. [24]
Antecedente do Oratório
As laude possuem um papel significativo na História da Música porque são consideradas comumente o antecedente mais significativo do Oratório enquanto gênero musical. Com efeito, alguns textos das laude do século XVI apresentavam elementos narrativos e dramáticos, tais como diálogos, diálogos combinados com narrativas, monólogos com narrativas e simples narrativas. A partir de 1600, com o surgimento da Ópera e seu stile rappresentativo (alternância de recitativo – declamação musical – e canto propriamente dito), irá se consolidando aquela forma musical que, sem encenação e figurinos, representará uma determinada narrativa de tema sagrado. Ter-se-á, então, o Oratório, amplamente cultivado nos países católicos na era barroca.
4. UM ORATÓRIO SOBRE SÃO FILIPE NÉRI
Um dos mais importantes compositores de oratórios foi Alessandro Scarlatti (1659-1725). Compôs também várias missas, óperas, motetos, cantatas e serenatas. Entre seus melhores oratórios está um chamado San Filippo Neri (Roma, 1705). Nessa importante obra, há quatro personagens: o próprio S. Filipe Néri (Tenor) e as três Virtudes Teologais – a Fé (Contralto), a Esperança (Mezzo-Soprano) e a Caridade (Soprano). É estruturada segundo o esquema típico da época: duas partes, uma abertura orquestral e sucessão de recitativos, árias solos e pequenos conjuntos vocais (duetos ou trios). O libreto apresenta as três Virtudes conversando e refletindo sobre a vida de S. Filipe, que, tendo rejeitado as riquezas e o mundo, aspira por uma união mística com Deus. É um tipo de oratório cujo libreto se caracteriza mais pela narração e reflexão do que propriamente pelo elemento dramático. O único conflito retratado é aquele na alma do próprio Santo, que suspira pela perfeição cristã. [25]
Abaixo apresentamos uma das árias desse Oratório, gravadas pelo casal autor do “CLARITASPULCHRI”, Thiago Plaça Teixeira e Melissa Bergonso. Trata-se do primeiro Recitativo e Ária da personagem “La Carità” (a Virtude da Caridade). A Caridade se dirige a S. Filipe e menciona os efeitos que o amor divino produz na alma dele, inclusive a dilatação corpórea de seu coração. Abaixo do vídeo indicamos a tradução Italiano-Português do texto cantado.
RECITATIVO Filippo, ancor non senti Qual nell’alma io t’accesi Di santo Amor vive facelle ardenti? La Caritá son io, Ch’oltre l’usato natural confine Dilatando il tuo petto, Al tuo cor di me pieno Composi nel tuo seno ampio ricetto: E palpitando ogn’ora, Scosso da mia possanza, Certi segni ti rende Dell’Amor che l’accende. ÁRIA Ami, e amando il tuo desio Nell’amar discopre in Dio Nuovi oggetti del tuo amore. Così, più ch’egli comprende La cagion per cui s’accende, Poco stima il proprio ardore. | ÁRIA Filipe, ainda não sentes Como em tua alma eu acendi Vivas chamas ardentes de santo Amor? Eu sou a Caridade, Que, além dos limites naturais Dilatando o teu peito, Em teu coração cheio de mim, Fiz ali um amplo abrigo: E palpitando o tempo todo, Abalado pelo meu poder, Dá a ti certos sinais Do Amor que o incendiou. ÁRIA Tu amas, e, por amar, teu desejo Descobre em Deus Novos objetos de teu amor. Assim, entendendo melhor A razão de ele se incendiar, Menos estima dará a seu próprio ardor. |
5. CONCLUSÃO
Da extraordinária vida de S. Filipe Néri fica a nós, músicos, além do exemplo de suas virtudes heróicas, também o modelo de correto uso da música: auxiliando toda classe de pessoas a se aproximarem do caminho da salvação na Santa Igreja.
S. Filipe tinha uma personalidade extraordinária, senso de humor, grande caridade e sabedoria para combinar a recreação com os exercícios espirituais. Foi justamente entre seus filhos espirituais, os oratorianos, que a música encontrou um importante espaço dentro do processo de formação da vida cristã. A união da pura beleza dos sons com o texto religioso edificante (vida de santos, virtudes, passagens da Sagrada Escritura etc.) mostrou-se uma fecunda semente de obras artísticas. De Carissimi a Perosi haverá uma multidão de grandes obras artísticas que devem ser honradas e apreciadas por nós, católicos.
Nos cum prole pia – benedicat Virgo Maria.
Referências
ALLORTO, Riccardo. Nuovo Dizionario Ricordi della musica e dei musicisti. Milão: Ricordi, 1976.
BACCI. The Life of St. Philip Neri, Apostle Of Rome. Omaha: Patristic Publishing, 2019 [1837].
GROUT, Donald. J.; PALISCA, Claude. V. Histórica da Música Ocidental. 4. ed. Lisboa: Gradiva. 2007.
WALTER, Aloysius. ALESSANDRO SCARLATTI. In: The Catholic Encyclopedia. Vol. 13. New York: Robert Appleton Company, 1912. Disponível em: <http://www.newadvent.org/cathen/13515a.htm>, acesso em 25/mai/2021.
WILSON, Blake. LAUDA. In: The New Grove Dictionary of Music and Musicians. London: Macmillan, 2001.
SMITHER, Howard E. A History of the Oratorio. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1977. v. 1: The Oratorio in the Baroque Era: Italy, Vienna, Paris Centuries.
TEIXEIRA, Thiago Plaça. São Filipe Néri – Devocionário. Curitiba: Appris, 2019.
+LAUS DEO VIRGINIQUE MATRI+
Notas:
[1] Já tratamos aqui no site sobre outros temas também referentes ao Oratório: Oratórios de Haydn, de Carissimi, de Stradella e aqueles apresentados no Oratorio del Santissimo Crocifisso, em Roma.
[2] TEIXEIRA, 2019, p. 35-36.
[3] TEIXEIRA, 2019, p. 36.
[4] TEIXEIRA, 2019, p. 36-37.
[5] TEIXEIRA, 2019, p. 40.
[6] TEIXEIRA, 2019, p. 40-41.
[7] TEIXEIRA, 2019, p. 41-42.
[8] TEIXEIRA, 2019, p. 44-45.
[9] TEIXEIRA, 2019, p. 45.
[10] TEIXEIRA, 2019, p. 45-46.
[11] TEIXEIRA, 2019, p. 48-51.
[12] BACCI, 2019, p. 76.
[13] SMITHER, 1977, tradução nossa.
[14] Apud SMITHER, 1977, tradução nossa. O autor aponta como fonte primária: BARONIO, Caesere. Annali ecclesiastici. Drawn from [the Annales] of Cardinal Baronio by Odorico Rinaldi Trivigiano. 3 vols. Rome: Vitale Mascardi, 1641–43. (1: 160)
[15] SMITHER, 1977.
[16] Apud SMITHER, 1977, tradução nossa. O autor aponta como fonte de tal carta: MARCIANO, Giovanni. Memori historiche della Congregatione dell’Oratorio. 5 vols. Naples: De Bonis, Stampatore Arcivescovale, 1693–1702. (1: 37)
[17] WILSON, 2001.
[18] SMITHER, 1977.
[19] WILSON, 2001; ALLORTO, 1976, p. 376; SMITHER, 1977.
[20] GROUT; PALISCA, 2007, p. 225.
[21] ALLORTO, 1976, p. 25; SMITHER, 1977.
[22] SMITHER, 1977. “Soto era particularmente conhecido por atrair grandes multidões ao oratório para ouvir suas performances solo de ‘laude’; poder-se-ia supor que ele cantou essas peças simples em versões ornamentadas, mas nenhuma documentação veio à luz sobre sua prática de performance. O oratório vespertino no período de inverno é o que acabou se tornando o mais importante para sua música. Esse foi particularmente o caso perto do final do século XVI, quando o número de sermões foi reduzido para um, uma medida que permitiu mais tempo para a música antes e depois do sermão, contribuindo para o formato geral do oratório do século XVII como gênero musical: uma composição em duas partes estruturais, com uma pausa entre elas para um sermão. As primeiras composições conhecidas que poderiam ser chamadas de oratórios, algumas das obras do ‘Teatro Armonico Espiritual de Madrigali’ (Roma, 1619), de Giovanni Francesco Anerio (Roma, 1619), foram compostas para o oratório vespertino.” (SMITHER, 1977, tradução nossa)
[23] SMITHER, 1977.
[24] SMITHER, 1977.
[25] SMITHER, 1977; WALTER, 1912.