As quatro causas da Música
No presente artigo tratarei da Música em si sob o ponto de vista da clássica teoria das quatro causas de Aristóteles: causa material, causa formal, causa eficiente e causa final. A fonte é um dos capítulos do livro “Estética musical em Santo Tomás de Aquino.” Alguns outros aspectos da filosofia tomista sobre a Música foram já tratados também no artigo “Os princípios da estética musical em Santo Tomás de Aquino”.
1. Os seres contingentes
Um ser que não tem em si a razão adequada de sua existência tem necessidade de uma causa para existir. Todo ser finito é necessariamente contingente, pois sua essência não existe em virtude de si, e, portanto, se ele existe é em virtude de uma causa extrínseca que lhe comunica a existência. E sendo a causa aquilo de que uma coisa procede quanto à existência, pode-se dizer que há tantos tipos de causas quantas há de dependência causal. Ora, há quatro tipos de dependência causal, pois um ser pode ser considerado (1) em si mesmo, (2) em sua constituição, (3) em sua origem ou (4) em sua atividade. Logo, há também quatro tipos de causa, as quais, tradicionalmente, são chamadas de causa material, formal, eficiente e final. Com efeito, do ponto de vista de sua constituição, o ser corporal resulta de duas causas, aquilo de que é feito (causa material) e o que determina a matéria para uma espécie dada (causa formal). Do ponto de vista da origem, todo ser depende de uma causa que, por uma ação física, confere-lhe o existir em ato (causa eficiente). Do ponto de vista do fim, toda ação está ordenada para um fim determinado a que se propõe ou para o qual uma causa superior a dirige; e, assim, o fim é causa da ação (causa final). [1]
2. As quatro causas
A causa material é, segundo Aristóteles, “aquilo do qual algo é feito e que lhe permanece imanente”, ou na fórmula escolástica: “aquilo a partir do que algo é feito à medida que é inerente” (Ex quo aliquid fit cum insit). Trata-se, em suma, de um elemento que é causa a modo de sujeito, isto é, de receptor passivo da forma. [2]
A causa formal é, segundo Aristóteles, “a forma e o modelo, isto é, a definição da quididade e seus gêneros”, ou na fórmula escolástica: “aquilo pelo que a coisa é determinada a certo modo de ser” (Id quod res determinatur ad certum essendi modum). Trata-se, pois, da forma intrínseca do ente considerado, ou seja, a causa formal propriamente dita, mas pode designar também o modelo, a causa exemplar, que é chamada causa formal extrínseca. [3]
A causa eficiente, ou causa motora, é, segundo Aristóteles, “aquilo do qual vem o primeiro começo da mudança e do colocar em repouso. Assim, o autor de uma decisão é causa, o pai é causa do filho e, em geral, o agente é causa daquilo que é feito; é o que faz o mudar daquilo que muda”; ou na fórmula escolástica: “é o princípio do qual primeiro emana o movimento” (Causa efficiens est principium a quo primo profluit motum). [4]
A causa final, ou fim, é “aquilo em vista do qual” a ação se produz (Id cujus gratia aliquid fit). Diz Aristóteles: “a saúde é a causa do passeio; com efeito, por que alguém passeia? Por sua saúde, diremos, e, falando dessa maneira, acreditamos ter indicado a causa”. [5]
3. As quatro causas e a Música
Em cada ser móvel pode-se assinalar uma causa própria em cada linha de causalidade. Eis o exemplo do caso de uma estátua de bronze: (1) a causa material é o bronze, (2) a causa formal é a figura que ela recebeu, (3) a causa eficiente é o seu escultor e (4) a causa final é a meta que se propunha alcançar com tal estátua. Para o nosso propósito que é o do âmbito da Música, pode-se perguntar como as quatro espécies de causa se aplicam ao caso específico de uma composição musical. A partir dos textos de Santo Tomás de Aquino sobre Música, pode-se propor a seguinte síntese:
3.1. Causa material
Em uma obra musical, a causa material remota (aquilo que se pode ou se deve usar para se fazer tal coisa) são os sons audíveis ao ouvido humano; e a causa material próxima (aplicação ou utilização propriamente dita de tal matéria) são, entre os sons audíveis, os sons com altura definida e cujas relações entre si, dentro do âmbito de uma oitava, são definidas em termos de altura (frequência sonora). Diz S. Tomás, em Sententia super Physicam, lib.2, l.5, n.4: “As consonâncias musicais são constituídas pela aplicação de proporções numéricas aos sons como a uma matéria”. Assim, pois, a escala de tons que determina a relação acústica precisa entre os diferentes sons pode ser considerada como sendo propriamente a matéria musical.
3.2. Causa formal
A causa formal extrínseca ou exemplar (ideia segundo a qual alguém produz um determinado objeto) de uma obra musical é a sua imagem na mente do artífice. Trata-se de uma ideia que ordena as relações entre os sons musicais desde as determinações mais fundamentais até à estrutura geral da obra musical. Diz S. Tomás em S. theol., I, q.44, a.3: “De fato, o artífice produz determinada forma na matéria por causa do exemplar que tem diante de si, seja ele um exemplar que se vê exteriormente, seja ele um exemplar concebido interiormente pela mente.” A causa formal intrínseca (princípio de determinação ou especificação) de uma obra musical é propriamente a sua estrutura. Ora, define-se estrutura como a disposição das partes ou dos elementos que formam um todo orgânico. Portanto, a forma intrínseca na música é a ordem das relações que unem os sons musicais e determinam seu lugar e sua função no todo. [6] Diz S. Tomás em S. theol., II-II, q.96, a.2 ad 2: “As formas dos corpos artísticos procedem da concepção artística, e não são senão composição, ordem e figura”.
3.3. Causa eficiente
A causa eficiente (princípio do qual primeiro emana o movimento) de uma obra musical é o agente responsável pela realização efetiva dela. Ora, deve-se considerar tal ação, no que concerne à Música, sob um tríplice aspecto:
Quanto à matéria
Isto é, no que se refere à ação de se definir os sons musicais e estabelecer as relações precisas entre eles. Nesse sentido, o músico é aquele que possui o conhecimento especulativo da Música enquanto ciência intermediária. Diz S. Tomás em In Phys., lib.2, l.3, n.8, que a música “aplica ao som aquilo que o aritmético considera acerca das proporções dos números”.
Quanto à forma
Isto é, no que se refere à ação de se estabelecer uma determinada sucessão sonora, conferindo-lhe ordem. Nesse sentido, o músico é aquele que possui um hábito intelectual que lhe proporciona a devida noção do que é necessário para conceber uma obra musical. Diz S. Tomás em In Boet. De Trin., pars 3, q.5, a.1 ad 3, que as artes liberais são chamadas de artes “porque implicam, não só conhecimento, mas uma certa obra que procede imediatamente da razão, como a construção de um silogismo, formar uma oração, enumerar, medir, compor melodias e calcular o curso dos astros.”
Quanto à existência física atual
Isto é, no que se refere à execução propriamente dita de uma composição musical. Nesse sentido, o músico é aquele que possui um hábito intelectual que lhe proporciona a devida noção do que é necessário para executar uma obra musical. Em Sententia libri ethicorum, lib.9, l.7, n.8, S. Tomás menciona a necessidade de determinadas artes serem aprendidas pela prática de ações, como ocorre com aquele que aprende um instrumento musical. [7]
O músico, considerado sob esse tríplice aspecto, pode ser considerado como sendo a causa eficiente física principal, enquanto que, no caso da música instrumental, o objeto que lhe serve de meio para emitir o som desejado pode ser considerado uma causa eficiente física instrumental separada; e no caso do canto vocal, trata-se de uma causa eficiente física instrumental unida. A causa eficiente moral, que determina a atividade do agente racional de modo apenas moral e não físico, são todos aqueles agentes que influem diretamente na ação do agente físico, tais como o estilo musical do mestre de um compositor ou de um intérprete.
3.4. Causa final
É aquilo em vista do que a ação se produz, ou seja, é o que propriamente determina a causa eficiente a agir. Deve-se fazer uma distinção entre a finalidade de uma obra, que é objetiva e é determinada pela sua natureza, e a finalidade do agente, que é subjetiva e reside na sua intenção. [8] Ora, uma composição musical, enquanto objeto de exercício especulativo e/ou prático, bem como de apreciação estética, tem por finalidade última, tal como todas as criaturas, dar glória a Deus [9], o que se efetua de dois modos. Primeiramente, de modo imediato, pelo uso da música na liturgia católica, isto é, no verdadeiro culto a Deus, dando maior decoro às cerimônias e auxiliando a aumentar a devoção dos fiéis. Em segundo lugar, de modo remoto, sendo útil ao homem como um meio para melhor conhecer, amar e servir a Deus: propiciando repouso ou distração honestos ou auxiliando o homem a fazer bom uso de sua inteligência, de sua vontade e de seus sentidos. Diz Santo Tomás, em In Symb. Apost.: “Devemos usar bem das coisas criadas. As coisas devem ser usadas conforme as finalidades que lhes foram dadas por Deus. As coisas foram criadas para dois fins: para a glória de Deus […] e para nossa utilidade.”
4. Conclusão
Em S. theol. I, q.5, a.4, ad 1, diz S. Tomás que “o conhecimento se refere à forma, o belo, propriamente, pertence à razão de causa formal”. Ora, a forma em Música é a organização das ideias musicais, estruturadas a partir de movimentos melódicos elementares que são ordenados de diferentes maneiras até constituírem
um conjunto uno e completo. Portanto, pode-se dizer que é nesse aspecto da obra musical, ou seja, na sua estrutura, na sua causa formal, que reside primordialmente a sua beleza própria.
Mas a beleza de uma obra musical pode ser eminente também pelas demais causas, além da causa formal. Pela causa eficiente, na medida em que seja o resultado da operação eficaz de um grande músico, aqui considerado em seu tríplice aspecto de teórico, compositor e executante. Pela causa material, na medida em que tem sua origem em uma gama de tons (i) racionalmente dispostos e mutuamente relacionados (aspecto acústico-matemático da escala), pois “nas coisas humanas é belo o que é conforme à razão” (S. theol., II-II, q.145, a.2); e também (ii) esteticamente agradáveis (aspecto psicológico da escala), pois “é da razão do belo acalmar o apetite com sua vista ou conhecimento” (S. theol., I-II, q.27, a.1 ad 3). Enfim, pela causa final, na medida em que, pela sua própria natureza e pelo uso a que se destina, ordena-se diretamente a um fim nobre no âmbito da vida humana e principalmente ao culto de Deus.
Nos cum prole pia – benedicat Virgo Maria.
Referências
BAS, Giulio. Tratado de la forma musical. Buenos Aires: Ricordi, 1957.
GARDEIL, Henri-Dominique. Iniciação à Filosofia de S. Tomás de Aquino. São Paulo: Paulus, 2013. v. 1: Introdução, Lógica, Cosmologia.
JOLIVET, Regis. Tratado de filosofia. Rio de Janeiro: Agir, 1972. v. 3: Metafísica.
TEIXEIRA, Thiago Plaça. Estética musical em Santo Tomás de Aquino. Curitiba: Appris, 2018.
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2001.
+LAUS DEO VIRGINIQUE MATRI+
Notas:
[1] Cf. JOLIVET, 1972, p. 288-295.
[2] GARDEIL, 2013, v. 1, p. 336.
[3] Ibidem, p. 336-337.
[4] Ibidem, p. 337.
[5] Ibidem, p. 338.
[6] Segundo Bas, as células ou elementos primários da composição musical são os motivos ou incisos, que são pequenos movimentos constituídos por um impulso e um repouso. Na música moderna, mensurada, corresponde ordinariamente à amplitude de um compasso. A partir desses organismos elementares se edifica toda a forma musical em uma crescente complexidade de interações de frases e períodos musicais. (cf. 1957, p. 51-107).
[7] Divisão bastante semelhante a esta é indicada por Boécio em seu Tratado de Música (De Institutione Musica), Livro 1, cap. 34: “Assim, há três tipos de pessoas que estão envolvidas com a arte musical. Um tipo é o dos que se apresentam em instrumento, outro compõe as canções e o terceiro avalia a performance dos instrumentos e as canções. Mas aqueles que se ocupam de instrumentos e aí consomem todo o seu esforço como os citaristas ou aqueles que provam suas habilidades no órgão ou outro instrumento musical -, estão afastados do entendimento da ciência musical, porque agem como escravos, como foi dito: nenhum deles chega à razão, mas estão totalmente afastados da especulação. O segundo gênero dos que praticam música é o dos poetas, que não tanto pela especulação e razão, mas por um certo instinto natural, são levados para a canção. Por esse motivo, esse gênero é separado da música. O terceiro é aquele que adquiriu a habilidade de julgar, de forma que possa examinar os ritmos, as melodias e as canções como um todo. Essa classe, porque está evidentemente baseada por completo na especulação e na razão, reputar-se-á estritamente musical.”
[8] Cf. JOLIVET, 1972, p. 316-317.
[9] Em S. theol. II-II q.103, a.1 ad 3, Santo Tomás distingue três termos: louvor, honra e glória. A honra consiste no ato de testemunhar, seja por palavras seja por outros sinais, a excelência da bondade de alguém, enquanto que o louvor estaria incluído na honra, pois consistiria no ato de honrar alguém verbalmente. A glória, por sua vez, seria efeito da honra e do louvor, “porque testemunhando a bondade do próximo, tornamo-la preclara no conhecimento de muitos; o que está compreendido na denominação mesma de glória, pois glória significa o que é claro”. A glória seria, portanto, o claro conhecimento da bondade de alguém acompanhado de louvor. Em S. theol., II-II, q.132, a.1, também diz S. Tomás que glória supõe que “o bem de alguém chegou ao conhecimento e à aprovação de muitos”.