Estética musical em Boécio
1. Introdução
Há alguns anos atrás tive a oportunidade de fazer meu mestrado, e escolhi estudar a estética musical em Boécio. Pouca gente o conhece, mas ele exerce um papel fundamental na história do Ocidente.
Boécio foi um importante filósofo da Idade Média, e no âmbito da estética, juntamente com Santo Agostinho, foi um grande transmissor dos conceitos gregos.
Havia na Antiguidade, especialmente entre os gregos, a consciência da estrita relação entre proporções numéricas e beleza material. Evidencia-se, na arte grega em geral, uma concepção quantitativa da beleza: a harmonia do conjunto é alcançada através de uma disposição dos seus elementos regida por um princípio de proporção. Tal concepção de beleza, fundada sobre a noção de proporção numérica, se tornou recorrente na Antiguidade através de pensadores como Pitágoras, Platão e Aristóteles, e passou adiante na história do Ocidente especialmente por meio de Boécio.
2. Quem foi Boécio e o que ele deixou
Anício Mânlio Severino Boécio (480-524 d.C.) nasceu em Roma e exerceu grande influência na filosofia medieval, pois intermediou a filosofia grega e a Escolástica. Devido às invasões germânicas, muitos textos da Antiguidade se perderam, e as obras que restaram apenas foram conhecidas mais tarde porque Boécio as traduziu do grego para o latim.
Boécio fez comentários sobre algumas obras, especialmente à Lógica de Aristóteles, e também adaptou as obras de Platão e Aristóteles, harmonizando-as entre si e adaptando-as à doutrina Cristã. Como ele tinha uma grande preocupação em buscar o aprofundamento da fé por meio de uma linguagem adequada, ficou conhecido como “o último dos antigos e o primeiro dos medievais”. [1]
3. Suas principais obras
Suas obras abrangem tratados de teologia, traduções de obras de Aristóteles, assim como também escritos sobre matemática e sobre música, entre outros temas, podendo-se destacar as seguintes obras: De Philosophiae Consolatione, Opuscula Sacra, Opuscula Philosophica: In Isagogen Porphyrii Commentorum Editio Prima et Secunda, De Institutione Musica, Institutio Arithmetica.[2]
Pelo menos duas de suas obras influenciaram em grande conta a Idade Média e períodos posteriores: Opuscula Sacra e De Institutione Musica. É por meio de Boécio que o mundo grego aparece na Idade Média, especialmente no que diz respeito às teorias musicais.[3]
4. A influência de Boécio
No campo da estética em particular, alguns autores que se dedicaram ao estudo da Idade Média apontam a fundamental influência exercida por Boécio. Segundo Umberto Eco, por exemplo, Boécio é quem “transmite à Idade Média a filosofia das proporções em seu aspecto pitagórico originário, desenvolvendo uma doutrina das relações proporcionais no âmbito da teoria musical”.[4] Em outras palavras, Boécio ocupou-se das ideias filosóficas dos pitagóricos,[5] baseadas nas noções de número, medida e proporção, para, assim, expor uma teoria musical em seu tratado De Institutione Musica. Fubini, por sua vez, enfatiza que “Boécio é o herdeiro mais fiel do pensamento clássico”.[6] Por meio de seus escritos, o filósofo teria deixado como herança “a famosa subdivisão da música em três gêneros diferentes”,[7] música cósmica, música humana e música instrumental, que aparecem na literatura medieval e renascentista.[8]
5. Objetivo do meu trabalho
O meu trabalho teve por objetivo principal expor, de forma geral, o que constituiu a estética musical em Boécio. Para chegar a isto, eu investiguei quatro pontos: a noção de beleza, a noção de harmonia, a música sonora propriamente dita e sua influência nos afetos humanos. Ainda que certos autores, já mencionados anteriormente, tenham se dedicado à estética de Boécio, no meu trabalho estudei e sistematizei ideias relacionadas não somente à música abstrata – entendida no sentido de harmonia – mas também ao gênero música sonora em particular, ou seja, ao gênero musical que Boécio classificou como instrumental. Deste modo, procurei salientar os principais conceitos utilizados por ele em seu tratado de música, tais como: proporção, consonância, afetos, apreensibilidade, entre outros, para expor, a partir daí, sua estética musical.
6. Traduções
Utilizei duas traduções para a obra De Institutione Musica de Boécio. Para o primeiro livro, usei a tradução do latim para o português de Carolina Parizzi Castanheira (CASTANHEIRA, C. P. De Institutione Musica, de Boécio – Livro I: Tradução e Comentários. 154 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009), e para os demais livros utilizei a tradução do latim para o espanhol de Salvador Villegas Guillén, da Ediciones Clásicas Madrid.
7. Divisão dos capítulos
A pesquisa foi dividida em dois capítulos:
I) BELEZA E HARMONIA. Estudo sobre: (i) a noção de belo em Boécio, abordando suas principais formulações e conceitos; (ii) a noção de música enquanto harmonia, em sentido teórico amplo e não estritamente sonoro, apontando seus diferentes âmbitos de aplicação.
II) MÚSICA SONORA. Investigação dos principais conceitos da estética musical de Boécio acerca da música sonora, analisando: (i) a conexão entre música e matemática, especialmente no que concerne à definição das consonâncias; (ii) o aspecto moral da música e sua relação com os afetos e os estados de ânimo da alma; (iii) a apreensão estética da música por parte dos sentidos e da inteligência do homem.
8. A escolha dos temas
A escolha destes temas como objeto de estudo desta pesquisa se deu pelo fato de que, em primeiro lugar, a questão da beleza é central no estudo da estética. Em segundo lugar, porque a música sonora engloba um duplo aspecto: o caráter matemático e racional da música, e a influência dos sons musicais nos afetos e no comportamento humano. Com efeito, estes dois pontos são centrais no pensamento estético-musical ocidental.[9]
9. Síntese do meu trabalho
Abaixo deixo a síntese do meu trabalho nos quatro pontos estudados: 1) A beleza; 2) Música e Harmonia, 3) Música e Matemática, 4) Música e Afetos.
9.1. A beleza
Levando-se em consideração as reflexões acerca do pensamento de Boécio, pode-se dizer, de forma geral, que sua noção de belo apresenta dois aspectos:
- há a Beleza Eterna, que é Deus;
- há a beleza das criaturas, que, por sua vez, engloba três características: 1) a superficialidade, porque diz respeito ao aspecto exterior das coisas; 2) a efemeridade, porque diz respeito ao caráter passageiro das coisas vistas e ouvidas; e a 3) apreensibilidade, porque a beleza refere-se também à capacidade do homem em captá-la através dos sentidos e da inteligência: “o sentido não percebe nada em sua totalidade, ainda que chegue a uma aproximação; a razão, contudo, certamente distingue.”[10]
O que parece determinar, contudo, que algo criado seja dito belo é a ordem que ele manifesta entre os diferentes elementos que o compõem. Por isso, há uma estreita relação entre beleza (“certa proporção entre os membros” e “forma agradável à consciência intuitiva”) e harmonia, considerada aqui como ordem entre os diferentes elementos que compõem um conjunto.
9.2. Música e Harmonia
Boécio distingue quatro tipos de música (ou harmonia): cósmica, humana, instrumental e divina. Pode-se apresentar a seguinte síntese de seu pensamento acerca dessa divisão conceitual:
- Música Divina: é a harmonia presente na Criação enquanto algo pensado e desejado por Deus, ou seja, refere-se a como a Sabedoria Divina rege ordenadamente todas as criaturas.[11] Uma vez que Deus é quem dá origem a todas as coisas, Ele também é o fim para o qual todas se voltam;
- Música Cósmica: é a harmonia que estabelece a ordem entre os diferentes elementos da natureza;
- Música Humana: é a harmonia estabelecida entre o corpo e a alma do homem, ou seja, física e espiritual.
- Música Instrumental: é a harmonia sonora, ou a música propriamente dita, da forma como a conhecemos na concepção moderna do termo.
Em todos estes âmbitos, é possível notar a centralidade dos princípios de ordem e equilíbrio. No caso específico da música instrumental, ou seja, da música sonora propriamente dita, sendo ela um produto da arte humana, ela apresenta-se como verdadeira harmonia na medida em que reflete, de modo eficaz, a música cósmica, e também enquanto é útil para a harmonia da alma, influindo em seu caráter de forma benéfica.
9.3. Música e Matemática
Sobre a relação da música com a matemática, pode-se sintetizar o pensamento de Boécio nestes cinco pontos:
- A base do som, e, consequentemente, da música, encontra-se no número e nas proporções numéricas.[12]
- A definição de consonância e dissonância possui um duplo aspecto: (i) sensível, pois a percepção do som é descrita como agradável ou desagradável, e (ii) matemático, pois a apreciação sonora ocorre também de forma racional, ou seja, através da inteligência.[13]
- A percepção musical está relacionada também ao duplo aspecto sensível e matemático: (i) ao aspecto psicológico envolvido na percepção musical, através dos sentidos; e (ii) ao aspecto objetivo das relações inteligíveis entre os sons, através da razão.[14]
- As consonâncias só são possíveis às relações numéricas simples que possuem unidade comum, ou seja: à proporção (i) múltipla, que respeita a natureza do número crescente ao infinito, e à proporção (ii) superparticular, que conserva as propriedades do número que diminui ao infinito. Daí, serem consideradas consonâncias somente os intervalos de oitava, quinta e quarta.[15]
- A partir das considerações de ordem matemática envolvidas na teoria de Boécio acerca das consonâncias é possível deduzir que, para Boécio, a noção de consonância está vinculada, primeiramente, a uma simples relação em termos de “altura” entre os sons e, em segundo lugar, ao efeito psicológico desta relação. Neste sentido, a harmonia musical, objetivamente falando, consiste nas relações numéricas simples aplicadas aos sons, uma vez que elas são mais facilmente compreensíveis, tanto pelo ouvido quanto pela inteligência, sendo, por este motivo, mas deleitosas à apreensão. A partir disso, podemos dizer que há um nexo entre (i) proporções numéricas aplicadas aos sons, (ii) facilidade de apreensão auditiva e racional, e (iii) deleite estético.[16]
9.4. Música e Afetos
As principais ideias de Boécio acerca da relação entre música e afetos humanos podem ser sintetizadas nestes seis pontos:
- Há uma espécie de possível semelhança entre os caracteres propriamente musicais, isto é, melodia, ritmo, harmonia, timbre etc., e os movimentos afetivos do homem. Nisto se funda parcialmente o efeito de agrado ou desagrado que determinados tipos de música costumam causar em pessoas com índoles e comportamentos específicos.[17]
- A escuta constante e habitual de um tipo de música, cujos caracteres sejam bastante característicos de um determinado estado afetivo, podem contribuir ou prejudicar as disposições interiores de uma pessoa, seja exacerbando vícios, seja auxiliando na disposição de virtudes.[18]
- Os efeitos da música podem ser tanto momentâneos, isto é, causando uma determinada emoção,[19] como permanentes, isto é, causando determinados sentimentos ou estados habituais de temperamento que acompanham a pessoa por um longo tempo.[20]
- Mudanças nos estilos musicais podem produzir efeitos não só nos indivíduos considerados isoladamente, mas também na sociedade como um todo.[21]
- Os elementos propriamente musicais que teriam uma relação direta com os efeitos emocionais são: (i) melodia;[22](ii) ritmo;[23] e (iii) timbre;[24] com aparente predomínio do aspecto rítmico, já que parece atuar mais diretamente no corpo humano.
- Não é possível considerar-se uma autonomia do âmbito estético-artístico em relação ao aspecto ético na música, pois um critério de julgamento para uma obra musical ou mesmo para um determinado estilo deve perpassar sempre pela consideração dos possíveis efeitos benéficos e maléficos sobre a psicologia humana e, consequentemente, sobre a vida moral das pessoas.[25]
10. Referência
BERGONSO, M. C. C. Número, Som e Beleza: A Estética Musical em Boécio. 100f. Dissertação (Mestrado em Música) – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2013.
[1] SAVIAN FILHO, J. Introdução geral. In BOÉCIO. Escritos (Opuscula Sacra). Tradução, introdução, estudos introdutórios e notas de Juvenal Savian Filho. São Paulo: Martins Fontes, 2005a, p.10.
[2] BOEHNER; GILSON, 2004, p.209-211.
[3] FUBINI, E. Música y Estética em la Época Medieval. Pamplona: EUNSA, 2008b, p.31.
[4] ECO, U. Arte e Beleza na Estética Medieval. Rio de Janeiro: Record, 2010, p.66.
[5] Tatarkiewicz explica que “uma das ideias filosóficas desta escola [pitagórica], a de que o mundo está construído matematicamente, foi de importância fundamental para a estética. […]. Especialmente, [os pitagóricos] demonstraram uma regularidade matemática na acústica. Observaram que o som harmonioso e a discordância das cordas dependem de sua longitude. […]. Para eles, a harmonia consistia em uma razão matemática dos componentes.” (TATARKIEWICZ, W. Historia de la estética. Vol. 1: La estética antigua. Madrid: Akal, 2000, p.87, tradução minha).
[6] FUBINI, 2008b, p.28, tradução minha.
[7] Id.
[8] Id.
[9] Cf. DAHLHAUS, C; EGGEBRECHT, H. Que é a música? Lisboa: Texto e Grafia, 2009, p.29-36 e FUBINI, 2008a, p.23-33.
[10] De Institutione Musica, V, 2, tradução minha.
[11] Diametralmente oposta à teoria materialista, segundo a qual o mundo foi formado por uma evolução permanente de uma matéria eterna, a doutrina cristã sempre ensinou que Deus criou todas as coisas com sabedoria. Além disso, Deus criou livremente o mundo, movido por sua bondade. O mundo é, pois, a realização das ideias divinas. Ora, tais ideias, enquanto pensamentos de Deus, são eternas e imutáveis, já que se identificam com a sabedoria e com a essência de Deus; mas quanto ao seu conteúdo, são temporais e mutáveis, já que versam sobre imitações finitas das perfeições de Deus. Assim, pela infinita simplicidade de seu ser, não há em Deus senão uma só ideia; mas enquanto abarca várias coisas distintas de Deus, então se fala de pluralidade de ideias (OTT, L. Manual de Teologia Dogmática. Barcelona: Herder, 1969, p.142-143). Santo Agostinho abordou o assunto, transformando em sentido cristão a doutrina platônica das ideias; e Santo Tomás de Aquino também tratou da questão, por exemplo, em Suma Teológica, I, q.44, a.3: “[…] É preciso dizer que na sabedoria divina estão as razões de todas as coisas, que acima chamamos de ideias, isto é, formas exemplares existentes na mente divina. Embora sejam múltiplas conforme se referem às coisas, não se distinguem da essência divina, uma vez que a semelhança com Deus pode ser participada por diversas coisas de modos variados. Assim, Deus é o primeiro exemplar de tudo.”
[12] “O agudo é feito de mais movimentos do que o grave e, como neles a pluralidade marca a diferença, é necessário que esta consista numa certa quantidade numérica.” (De Institutione Musica, I, 3).
[13] “A consonância é a mistura de um som agudo e outro grave, que chega aos ouvidos de forma suave e uniforme. A dissonância é a percussão dos sons misturados entre si, que chegam aos ouvidos de forma áspera e desagradável”; “ainda que o sentido do ouvido reconheça também as consonâncias, é a razão que capta o seu valor.” (De Institutione Musica, I, 8).
[14] Ver nota anterior.
[15] “[…] todas as consonâncias musicais consistem na proporção dupla, ou na tripla, ou na quádrupla, ou na sesqualter, ou na sesquitertia. A que em números é chamada sesquitertia, em sons chamar-se-á diatessaron. A que em números é chamada sesqualter, em sons chamar-se-á diapente. A que é dupla nas proporções, nas consonâncias chamar-se-á diapason. A que é tripla, diapason-et-diapente. A que é quádrupla, bis diapason.” (De Institutione Musica, I, 7).
[16] “Não há dúvida de que a consonância diapason é a primeira de todas e supera em alcance, já que excede a todas em seu reconhecimento.” (De Institutione Musica, II, 18, tradução minha).
[17] “Um ânimo lascivo ou se compraz com modos mais lascivos ou, ao ouvi-los frequentemente, torna-se mole e corrompido; pelo contrário, uma mente mais rude ou tem prazer com modos mais incitados, ou se endurece com eles.” (De Institutione Musica, I, 1).
[18] “Quando os ritmos e os modos penetram no ânimo através dos ouvidos, não se pode duvidar que afetam e modelam as mentes da mesma maneira.” (De Institutione Musica, I, 1).
[19] “Se é verossímil que uma pessoa possa ser transportada de um estado de ânimo pacífico à loucura e à ira, não é duvidoso que um modo mais modesto pode aplacar a ira e a excessiva paixão de uma mente perturbada.” (De Institutione Musica, I, 1).
[20] “Os espartanos se indignaram com Timóteo de Mileto porque, ao introduzir uma música mais complicada na mente das crianças, as quais acolheu para educar, estragava-as e as afastava da medida da virtude.” (De Institutione Musica, I, 1).
[21] “Platão defende que constitui grande defesa de uma sociedade uma música prudentemente ajustada e de mais alta moral, de forma que seja modesta, simples e viril, e não efeminada, rude ou variada.” (De Institutione Musica, I, 1).
[22] “O estado de nossa alma e de nosso corpo, como parece, é regulado de alguma forma pelas mesmas proporções com as quais, […], estão unidos e ligados os arranjos de notas que formam a melodia.” (De Institutione Musica, I, 1).
[23] “Quando alguém voluntariamente escuta uma canção com os ouvidos e com sua mente, é levado involuntariamente a reproduzir com o corpo algum movimento similar à canção escutada.” (De Institutione Musica, I, 1).
[24] “Acaso não é também manifesto que os ânimos dos que combatem em guerra se engrandecem com o som das trombetas?” (De Institutione Musica, I, 1).
[25] “A música não só está associada à especulação, mas também à moral.” (De Institutione Musica, I, 1). Também autores recentes corroboram esta ideia de que as músicas devem ser julgadas levando-se em conta, entre outras coisas, seu caráter moral (Cf. RIPPERGER, C. Introduction to the Science of Mental Health. Vol. 3. Denton: Sensus Traditionis Press, 2007, p.591-593).