O artista cristão

O artista cristão

Prof. Thiago Plaça Teixeira

1. Introdução

Certamente os católicos músicos, pintores, escultores etc., ou seja, os artistas cristãos em geral, enfrentam quotidianamente, tanto no exercício da profissão como no seu processo de formação, situações desafiadoras: a ditadura do feio na Arte contemporânea em geral, a apostasia das nações e suas consequências na cultura em geral, a decadência dos costumes, os espetáculos escandalosos etc. Tratarei brevemente neste artigo sobre alguns pontos que julgo importante quanto à Arte exercida por um cristão. Em primeiro lugar, as obrigações do cristão com relação à profissão em geral. Em segundo lugar, o próprio conceito de Arte e, em seguida, alguns princípios de ordem moral acerca da Arte. Em terceiro lugar, finalmente, algumas considerações sobre a Arte Sacra.

2. Profissão e vida cristã[1]

Um primeiro aspecto a ser considerado pelos artistas cristãos é a sua Arte enquanto profissão, com deveres de justiça e caridade semelhantes aos que existem em outros ofícios. Muitas vezes, há algumas concepções idealistas em torno do gênio e do talento artístico, o que acaba desvinculando o artista de sua realidade imediata e do impacto familiar e social de seu trabalho.

Na sua Teologia moral para seglares (1957), o Pe. Antonio Royo Marin (1913-2005), cujos escritos eu particularmente aprecio, apresenta alguns esquemas de orientação profissional. São basicamente tópicos a serem meditados como exame de consciência pelas diferentes classes de profissionais. Indico aqui um trecho em que ele trata da profissão em geral e sua inserção na vida cristã.

2.1. Espécie e finalidade do trabalho

Tua fé cristã exige uma visão e realização sobrenatural de teu trabalho.

A) Quanto à espécie de trabalho:

1. A Providência de Deus te assinalou uma determinada profissão. Seu reto desempenho equivale ao cumprimento da vontade de Deus sobre ti.

2. O que dignifica o trabalhador não é a excelência de sua profissão, mas o amor a Deus com que a exerce. Em todos os postos da sociedade podes e deves servir a Deus como seu filho.

B) Quanto à finalidade do trabalho:

1. Torna-te semelhante a Deus. Continuas a obra da criação, desenvolvendo-a, descobrindo suas leis, melhorando as coisas.

2. Pode ser sacrifício redentor: Se o unes a Cristo. Todo trabalho exige esforço e luta contra a resistência das coisas exteriores e a inércia interna que tende ao repouso. Com tua fadiga e tua dor podes satisfazer por teus pecados e reestabelecer a ordem em tua pessoa, pelo domínio – adquirido no trabalho – da razão sobre as tendências inferiores.

3. É fonte de graças sobrenaturais: a) Para ti, que te santificas com teu trabalho; b) Para os demais membros do Corpo Místico de Cristo [a Igreja], que se enriquece com teu trabalho meritório e com o valor exemplar de tua conduta.[2]

2.2. Não trabalhar como um pagão

C) Não trabalhes como um pagão:

1. Deves referir teu trabalho a Deus: É ao Senhor a quem serves. Não penses somente em agradar a teus chefes, superiores, público, em ser famoso pelo êxito de tuas obras. Tudo isso é mesquinho e perecível.

2. Tua missão é glorificar a Deus. Que por teu trabalho todas as criaturas O louvem e O sirvam. Não busques somente nem principalmente o salário terreno. “Façais um tesouro inesgotável no Céu” (Lc XII, 33).

3. Não te deixes absorver totalmente por teu trabalho. És rei do mundo e não escravo da matéria. Ofereça, ao começar cada dia, este dom de teu próprio trabalho ao Senhor, que te deu a vida e a conserva. “Tudo é vosso:… o mundo, a vida, a morte, o presente e o futuro. Tudo é vosso! Mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus.” (I Cor III, 21-23)

4. Assim, o exercício da profissão será:

a) Tua contribuição pessoal ao progresso da humanidade e ao bem-estar de teus irmãos.

b) Um caminhar para Deus com a alma carregada de méritos e o coração transbordante de alegria. Quão feliz se sente alguém quando cumpriu seu dever![3]

3. A Arte

Os atos que executamos são de espécie distintas: somos, conhecemos, agimos e fazemos. O ser é da alçada da Metafísica. As três operações – conhecer, agir e fazer – correspondem a três ordens distintas, que se realizam, sob a forma de três disciplinas principais: a Ciência (conhecimento), a Moral (atividade) e a Arte (factividade). Enquanto as nossas ações são atos que se nos seguem, as nossas obras, por outro lado, são capazes de substistir além de nós.[4] Um livro, um edifício, uma composição musical, continuam a existir independentemente de seus artífices.

Essencialmente, a Arte consiste em uma reta noção das coisas a fazer (recta ratio factibilium), ou seja, tem por função “determinar que condições a obra a produzir deve preencher para ser conforme à ideia do artífice”.[5] Algumas artes são ditas simplesmente úteis, enquanto outras são belas. Ambas consistem em se fazer passar uma ideia (ideia de uma melodia, de uma pintura etc.) para uma matéria (sons, cores, pedras etc.), a diferença residindo em que as primeiras visam essencialmente a um fim útil (sem excluir a beleza), enquanto que as segundas são desinteressadas e visam simplesmente à produção de algo belo. É comum, portanto, que se restrinja o conceito de Arte a este tipo de belas-artes.[6] Quando se fala de artista, considera-se sobretudo o profissional que produz uma obra fruto de alguma das belas-artes.

4. Princípios fundamentais sobre a Arte

Especificamente para o artista, o Pe. Royo Marin aponta como um dos problemas a serem tratados a pretensa autonomia da arte, isto é, uma concepção errônea, infelizmente bastante difundida, de que há uma liberdade ilimitada no que concerne às criações artísticas do homem. Em outras palavras, haveria uma independência da Arte acerca das normas morais. O referido padre indica então o que seria a solução e a tese verdadeira:

A Arte é do homem e para o homem.

Sendo algo humano, deve estar orientado a seu último fim. É algo estético e também moral, pois toda ação e obra humana adquirem traço de moralidade.

A essência e caracteres da Arte lhe assinalam um lugar preeminente na hierarquia de valores humanos.

Logo, deve orientar-se àquilo que constitui o fim último do homem: Deus.

A Arte é um meio que o Criador colocou ao alcance do homem para a mais perfeita integração de sua natureza racional.

Logo, as fronteiras da Arte não estão em si mesma, mas no Criador.

Dado que a Arte leva em si um selo de universalidade, sua finalidade é cooperar à realização de um ideal integralmente humano, em conformidade com sua natureza racional, ordenado ao plano do divino.

Do plano sobrenatural emanam as leis que dão sentido à existência da Arte e marcam à sua obra um fim supremo.[7]

Vê-se, portanto, que não existe uma total independência da Arte em relação à Moral. Aliás, será o fim sobrenatural do homem o que lançará luz sobre o verdadeiro papel das obras artísticas dentro da vida humana.

5. A missão da Arte[8]

Diz o Pe. Royo Marin que há duas missões para a Arte em geral, uma negativa e outra positiva.

5.1. Missão negativa

A missão negativa é basicamente não ser obstáculo ao homem em seu caminho para Deus. Nesse contexto, um artista não seria integralmente tal se carecesse de três coisas: (1) gratidão, (2) humildade e (3) sentido de responsabilidade.

Terá gratidão o artista que é consciente de que foi criado à imagem de Deus, o supremo artista, Aquele que faz maravilhas, e que foi Ele quem o fez também artista. E, assim, sua música, suas pinturas, suas poesias deverão dar glória a Deus e elevar as almas até Ele. Terá humildade o artista que refere seus valores ao verdadeiro Dono, mesmo aquelas coisas alcançadas à força de trabalho e estudo ou mesmo as criações artísticas individuais, pois é Deus quem nos dá a força, a inteligência e é Ele também quem torna possíveis as obras humanas, que já preexistiam na mente divina. Terá sentido de responsabilidade o artista que é consciente de que a sua influência, tanto para o bem como para o mal, é muito grande e atinge muitas pessoas. Daí que jamais lhe será permitido apresentar o mal moral sob o véu de beleza.

5.2. Missão positiva

A missão positiva da Arte é: ser um instrumento que sirva ao homem para elevar-se à beleza suprema, que é Deus. Diz o Papa Pio XII: “O dever e a missão da arte retamente utilizada é elevar o espírito, mediante a vivacidade da representação estética, a um ideal intelectual e moral que, ultrapassando a capacidade dos sentidos e o campo da matéria, o elevam até Deus, bem supremo e absoluta beleza, de quem toda beleza deriva.” E, de fato, muitas vezes a linguagem artística move a vontade de modo mais eficaz que um argumento contundente. Por meio de uma bela obra artística podem também brotar sentimentos profundos e resoluções firmes.

6. A arte sagrada

O Pe. Royo Marin finaliza seu trecho sobre os artistas tratando sobre a arte sacra em particular. Expressa ele o desejo de que os artistas criem suas obras “em graça”, isto é, que tenham a graça divina em suas almas quando realizam seus trabalhos. Em seguida, diz que é a Igreja Católica quem mais enriqueceu a história da Arte, não havendo algum grupo confessional, ideológico ou social que tenha um acervo artístico comparável ao dela. Aos artistas atuais caberia a missão de contribuir dignamente a que tal acervo cresça ainda mais.

Podeis [os artistas] ser ministros da Igreja, cooperando à glória de Deus e à santificação das almas, se vossas obras mostram a divina doutrina de forma clara e compreensível, ao alcance de todos. Podeis escolher suavidade e doçura artística, banhadas de misticismo; ou o panorama acentuado com a nota brava e titânica da luta espiritual. Não tenhais dúvida, artistas! A religião profundamente sentida e apaixonadamente amada será para vós manancial inesgotável da mais sublime inspiração.[9]

7. Música sacra

Se os artistas em geral são convidados a trabalharem diretamente à serviço da Santa Igreja, os músicos, em particular, possuem ainda a peculiaridade de terem a sua Arte como sendo a mais intimamente ligada à própria Liturgia católica. Diz o Papa Pio XII:

Essas leis da arte religiosa vinculam com liame ainda mais estreito e mais santo a música sacra, visto estar esta mais próxima do culto divino do que as outras belas-artes, como a arquitetura, a pintura e a escultura; estas procuram preparar uma digna sede para os ritos divinos, ao passo que aquela ocupa lugar de primeira importância no próprio desenvolvimento das cerimônias e dos ritos sagrados. […] E, de fato, nisto consiste a dignidade e a excelsa finalidade da música sacra, a saber, em – por meio das suas belíssimas harmonias e da sua magnificência – trazer decoro e ornamento às vozes quer do sacerdote ofertante, quer do povo cristão que louva o sumo Deus; em elevar os corações dos fiéis a Deus por uma intrínseca virtude sua, em tornar mais vivas e fervorosas as orações litúrgicas da comunidade cristã, para que Deus uno e trino possa ser por todos louvado e invocado com mais intensidade e eficácia.[10]

8. Conclusão

Temos, assim, um panorama geral da relação do cristão com a sua profissão e alguns princípios fundamentais que devem guiar particularmente o cristão artista, tanto no desempenho ordinário de seu ofício, como na sua eventual dedicação à arte sagrada.

Referências

GILSON, Etienne. Introdução às artes do belo: o que é filosofar sobre a arte? São Paulo: É Realizações, 2010.

JOLIVET, Regis. Curso de filosofia. Rio de Janeiro: Agir, 1968.

MARIN, Antonio Royo. Teologia Moral para Seglares. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1957. v.1: Moral fundamental y especial.

PIO XII. Encíclica Musicae Sacrae. Disponível em: <https://w2.vatican.va/content/pius-xii/es/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_25121955_musicae-sacrae.html>. Acesso em: 23/08/2020.

+LAUS DEO VIRGINIQUE MATRI+


[1] MARIN, 1957, p. 743-744.

[2] MARIN, 1957, p. 743, tradução nossa.

[3] MARIN, 1957, p. 743-744, tradução nossa.

[4] GILSON, 2010, p. 25-26.

[5] JOLIVET, p. 361.

[6] Ibidem.

[7] MARIN, 1957, p. 770-771, tradução nossa.

[8] Apresentamos aqui uma paráfrase nossa do que o Pe. Royo Marin escreve na forma de tópicos. (Cf. MARIN, 1957, p. 771)

[9] MARIN, 1957, p. 772, tradução nossa.

[10] PIO XII.

Prof. Thiago Plaça Teixeira

O Professor Thiago Plaça Teixeira é Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Paraná, Bacharel em Piano pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná, Mestre e Doutor em Música pela Universidade Federal do Paraná. Foi premiado em concursos de piano e atuou com diversos instrumentistas, cantores e grupos corais em concertos, óperas, festivais e séries de música de câmara. Trabalhou em instituições de ensino superior no Paraná ministrando disciplinas teóricas e práticas. Como pesquisador, direciona seus estudos à música sacra católica, área em que também tem experiência prática atuando como organista.

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