Os princípios da estética musical em Santo Tomás de Aquino

Os princípios da estética musical em Santo Tomás de Aquino

Prof. Thiago Plaça Teixeira

1. Introdução

Quando iniciei meus estudos universitários, por volta dos 16-17 anos, fiz ao mesmo tempo o Curso de Arquitetura e Urbanismo na UFPR (Universidade Federal do Paraná) e o Curso Superior de Piano na antiga EMBAP (Escola de Música e Belas Artes do Paraná). Não apenas pelo conhecimento técnico recebido, guardo com boas recordações esse período como um momento de aprender a estudar, a recorrer a boas fontes e a analisar criticamente. Era uma época em que dependíamos quase inteiramente ainda dos livros e dos professores, não havia redes sociais, a internet ainda não era tão popular, o acesso aos meios tecnológicos era mais restrito.

Já desde a infância eu havia recebido formação musical, mas foi sobretudo no período universitário que me deparei com aspectos mais profundos referentes à Arte: a noção de Beleza, a íntima conexão entre as ideias e a produção artística na História, os diferentes fatores que afetam uma obra de arte, o problema do desenvolvimento dos estilos artísticos e assim por diante. Foi nessa época de estudante que também tive o primeiro contato com o pensamento de Santo Tomás de Aquino.[1] Valeu-me aqui a famosa frase do Papa Pio XI: “A todos quantos agora sentem sede da verdade, dizemos-lhes: ide a Tomás de Aquino” (Papa Pio XI, Encíclica Studiorum Ducem, 19 de junho de 1923).[2]

Alguns anos mais tarde, tive a oportunidade de fazer o Mestrado em uma linha de pesquisa na área de Filosofia da Música. Foi a ocasião propícia para resolver um problema muito simples: na extraordinária produção intelectual de Santo Tomás, o que teria ele ensinado especificamente sobre a Música? Com efeito, a sua “Estética”[3] geral já havia sido estudada e sistematizada por autores antigos, principalmente Umberto Eco (Il problema estetico in Tommaso d’Aquino, 1956) e Edgar De Bruyne (Études d’esthétique mediévale, 1946), além de outros como J. Maritain (Art et scholastique, 1920), M. De Munnynck (L’ésthetique de Saint Thomas, 1923) e M. De Wulf (Art et beauté, 1943). Mas não havia ainda algo particularmente dedicado ao problema da Música.

Há alguns anos publiquei o resultado da pesquisa sob a forma do livro Estética musical em Santo Tomás de Aquino.[4] Revisitando tal estudo, apresento aqui o que julgo ser uma síntese do pensamento do Angélico Doutor sobre a arte dos sons. São 14 conclusões divididas em 3 áreas: (1) Música e emoções, (2) Música e números e (3) Música e Beleza.

2. Música e emoções

I. A música influi nos afetos humanos. Diz Santo Tomás: “segundo as diferenças das melodias, as pessoas são levadas a sentimentos diferentes” (S. theol., II-II, q.91, a.2); e “as consonâncias musicais mudam o afeto do homem” (In Psalm., XXXII, n. 2).

II. A influência da música sobre os afetos humanos está relacionada a uma correspondência entre a estrutura sonora de uma obra musical e os movimentos afetivos do homem. Santo Tomás indica isso ao citar a seguinte passagem de Santo Agostinho: “todos os afetos de nosso espírito, conforme a sua diversidade, descobrem modalidades próprias da voz e do canto com as quais se movem, por uma secreta familiaridade” (Cf. S. theol., II-II, q.91, a.2).

III. Os elementos musicais que estruturam uma obra musical e que, consequentemente, influem nos afetos humanos são:

a) Melodia (ordenação dos sons em termos de altura). Santo Tomás refere-se indiretamente aos intervalos melódicos ao citar, em In Psalm., XXXII, n.2, a tradicional teoria sobre os modos eclesiásticos, que são justamente diferentes tipos de organização dos tons e semitons dentro de uma oitava. Tal referência é feita no trecho em que ele menciona, seguindo Aristóteles (Cf. Política, Livro VIII), três gêneros musicais e seus consequentes três efeitos no homem: (i) retidão e firmeza de alma, (ii) arrebatamento às coisas excelsas e (iii) doçura e alegria.

b) Ritmo (ordenação temporal dos sons). Pode-se considerar que Santo Tomás estava familiarizado com as duas fontes que ele cita: 1) o Proêmio do De Institutione Musica de Boécio, que em determinado trecho menciona o fato de que aqueles que escutam uma canção muitas vezes propendem “involuntariamente a que seu corpo reproduza algum movimento similar à cantilena escutada”; e 2) o capítulo V do Livro VIII da Política de Aristóteles, em que é dito que qualquer canção imita algum caráter, sendo que, nos ritmos, “alguns têm uma característica de repouso, outros transmitem movimento, e entre esses últimos, alguns se referem a movimentos mais nobres e outros a movimentos mais vulgares”.

c) Timbre. Santo Tomás refere-se indiretamente a isto em In Psalm., XXXII, n.2, relacionando alguns instrumentos musicais com determinados efeitos da música, como, por exemplo, o paralelo entre o órgão e o efeito de “arrebatar às coisas elevadas”. Também em S. theol., II-II, q.91, a.2 ad 4, pode-se notar a ideia de que certos instrumentos, ao moverem a alma simplesmente ao deleite, são mais próprios daqueles pouco dispostos às coisas espirituais, tal como ocorria no Antigo Testamento, em que certos instrumentos eram usados porque “o povo era mais grosseiro e carnal, e por isso deviam ser estimulados por tais instrumentos”.

IV. A influência da música sobre os afetos humanos pode ser superficial, provocando determinadas emoções, ou profunda, favorecendo uma boa ou má disposição interior. A influência superficial é referida, por exemplo, em In Psalm., XXXII,n.2, no trecho em que Santo Tomás cita o episódio relatado por Boécio, em que Pitágoras, vendo que um jovem estava furioso ao som do modo frígio, fez alterar o modo e, assim, abrandou o ânimo do jovem enfurecido para um estado apaziguado. Algo semelhante encontra-se também em Lectura super Matthaeum, cap.11, l.2. Trata-se, com efeito, de uma rápida mudança de comportamento e diz respeito a determinadas paixões do apetite sensível do homem. A influência estável da música pode ser deduzida em S. theol., II-II, q.91, a.2 ad 4, a partir da citação que S. Tomás faz de Aristóteles a respeito do uso da música na educação. Santo Tomás afirma que determinados instrumentos musicais “movem mais a alma para o deleite do que para a formação da boa disposição interior”.

V. Dada a influência da música sobre os afetos humanos, pode a música contribuir para se atingir uma determinada finalidade, tal como aumentar a devoção dos fiéis no louvor a Deus ou prover ao homem um deleite estético conveniente à sua natureza racional. Santo Tomás afirma, primeiramente, que a música pode estimular a devoção. Em S. theol., II-II, q.91, a.2c, diz que “foi salutar a introdução do canto nos louvores divinos para que os espíritos mais fracos fossem mais incentivados à devoção”. Em In Psalm., XXXII, n.2, diz que no louvor a Deus “são executadas algumas músicas, a fim de incitar a alma a se voltar para Deus”. Em In Eph., cap.5, l.7, indica que o louvor interior expressa-se externamente em sons para estimular as almas para a devoção interior; e em In Col., cap.3, l.3, S. Tomás refere-se ao uso dos cânticos com o intuito de “excitar o cântico dos corações e para proveito dos simples e rudes”. Por outro lado, também S. Tomás reconhece, em S. theol., II-II, q.91, a.2 ad 2, que determinadas músicas podem não ser adequadas à finalidade à qual se destinam, como é o caso das que são executadas por aqueles que na igreja cantam de modo teatral, “não para excitar a devoção, antes para se exibirem e se deleitarem”. Quanto ao deleite desinteressado, puramente estético, Santo Tomás faz referência a ele ao dizer que, diferentemente dos animais, o homem pode gozar de algo sensível simplesmente pela apreensão da beleza do referido objeto, isto é, sem relação direta com alguma utilidade ou necessidade biológica. Em S. theol., I, q.91, a.3 ad 3, diz S. Tomás que o homem “encontra prazer na beleza das coisas sensíveis tomadas em si mesmas”; e em S. theol., II-II, q.141, a.4 ad 3, cita o caso concreto da música: “O homem […] goza prazeres dos outros sentidos […] pelas sensações agradáveis que encontra no seu objeto […] como acontece quando o homem se deleita com um som harmonioso.” (Cf. In Eth., lib.3, l.19, n.13; S. theol., II-II, q.168, a.2 ad 3).

3. Música e números

VI. A noção de consonância musical está diretamente relacionada (i) às relações matemáticas que estruturam os sons musicais, quanto à altura; e (ii) à capacidade de apreensão e entendimento dessa estrutura por parte dos sentidos e por parte da inteligência do sujeito cognoscente. Há uma estreita conexão entre números e música, pois as diferenças de altura, ou seja, o fundamento da distinção entre sons graves e agudos, reduzem-se sempre a relações numéricas em termos de frequência. Entre as diversas relações possíveis, em termos de altura, entre os sons, há algumas que são causadas por proporções numéricas bastante simples, sendo, por essa razão, mais facilmente apreendidas e, consequentemente, mais agradáveis de se contemplar, e tais seriam as consonâncias. Quanto (1) mais simples as relações, (2) mais inteligíveis, (3) mais facilmente captáveis e, consequentemente, (4) mais deleitosas. (Cf. In De sensu, tract.1, l.7, n.7; In Metaph., lib.1, l.16, n.4; Sententia libri De anima, lib.1, l.7, n.9).

VII. A música é uma ciência intermediária. A Música é uma ciência, isto é, um conjunto de proposições logicamente ordenadas entre si e demonstráveis por redução à evidência ou por via de experimentação. Mas como os princípios de que se vale são oriundos de outra ciência – a Aritmética – e a aplicação deles se dá em uma matéria sensível – os sons –, então a música é considerada uma ciência intermediária. (Cf. S. theol., I, q.1, a.2; In Post., lib.1, l.41, n.3; In Boet. De Trin., pars 3, q.5, a.3 ad 6)

VIII. A música é uma arte. A Música é uma arte, isto é, um hábito intelectual que proporciona a devida noção do que é necessário para uma conveniente execução de uma determinada obra. Envolvendo conhecimentos de ordem científica, a música, do ponto de vista operativo, dirige-se à feitura de obras que procedem imediatamente da razão, tal como a composição de uma melodia (Cf. In Boet. De Trin., pars 3 q.5, a.1 ad 3:); e à execução propriamente dita das obras produzidas, o que envolve a participação das potências corporais. (Cf. In Metaph., lib.9, l.7, n.8)

4. Música e beleza

IX. O Belo é aquilo cuja apreensão agrada. O conceito de Belo diz respeito tanto à potência apetitiva, já que causa deleite, como à potência cognoscitiva, já que causa deleite em sua apreensão. Por isso, o Belo não é nem simplesmente o que deleita e nem simplesmente o que é conhecido, mas o que deleita pelo seu conhecimento. (Cf. S. theol., I, q.5, a.4 ad 1; I-II, q.27, a.1 ad 3)

X. Há três notas – proporção, integridade e clareza – que são próprias daquilo que é belo. Pela proporção ou harmonia, o ente é completo e uno; pela integridade ou perfeição, o ente possui tudo o que lhe é devido; e pela clareza, ele manifesta essa ordem que lhe é própria. (Cf. S. theol., I, q.39, a.8) Uma possível definição analítica de beleza, elaborada a partir dos princípios expostos por Santo Tomás, deveria, pois, conter: a sua identidade com o bem, quanto ao sujeito, a sua particular ordenação à potência cognoscitiva e os elementos constitutivos intrínsecos. Tal definição para Beleza poderia ser a seguinte: a perfeição do ente que resplandece pela ordem e deleita pela apreensão, ou ainda, mais sucintamente, o esplendor da ordem. Assim, pois, o Belo supõe, no objeto, uma dupla harmonia: (1) uma harmonia em si mesmo e (2) uma harmonia entre ele e o sujeito que o percebe. Ou seja, é necessário uma ordem intrínseca que se manifeste claramente e que corresponda à capacidade perceptiva daquele que o contempla.

XI. O belo é uma noção analógica. Sendo coextensivo com o ser, o Belo aplica-se a diferentes âmbitos da realidade, entre os quais o da obra artística humana, na qual também se realiza segundo as propriedades gerais de proporção, integridade e clareza, e pela sua ordenação às potências cognoscitiva e apetitiva do homem. (Cf. Super librum Dionysii De divinis nominibus, c.IV, l.5)

XII. Em Música, o conceito de Proporção em sentido quantitativo refere-se às relações mensuráveis que funcionam como elemento organizador dos diferentes elementos sonoros (altura, duração, intensidade, velocidade, estrutura geral da obra etc.) e como um meio de se reduzir entidades sonoras diversas a uma unidade inteligível. Em sentido qualitativo refere-se às relações de semelhança, oposição, igualdade, distinção etc. entre elementos sonoros dentro de uma obra musical e que têm por fim garantir à obra um equilíbrio ou ordem estrutural interna.

XIII. Em Música, o conceito de Integridade pode designar três coisas distintas: (1) a adequação da obra musical à ideia concebida pelo seu artífice; (2) a ideia de completude, coerência e ordem interna de uma obra; ou (3) a correspondência entre a obra musical e a finalidade que cabe à Música em geral: o seu uso no louvor de Deus e a fruição estética.

XIV. Em Música, o conceito de Claridade designa a correspondência entre a estrutura interna de uma obra musical e a capacidade receptiva (sensitiva e intelectual) do homem. Significa, pois, aquela propriedade pela qual os diferentes aspectos de uma obra musical, suas proporções internas e sua completude estrutural se oferecem evidentes ao ouvido e à mente do homem, propiciando que do conhecimento de tal obra se siga o deleite.

+LAUS DEO VIRGINIQUE MATRI+


[1] Santo Tomás nasceu no castelo de Aquino, em Roccasecca, na região de Nápoles, e por volta dos cinco anos de idade entrou, como oblato, na Abadia beneditina de Monte Cassino. Estudou Artes Liberais na Universidade de Nápoles, foi recebido na Ordem dos Pregadores (frades dominicanos) e, em 1248, foi ordenado sacerdote. Foi professor em Paris, primeiramente, entre 1252 e 1259, e também mais tarde, entre 1269 e 1272. Esteve, entre 1261 e 1264, em Orvieto, na corte do Papa Urbano I, e em 1267 em Viterbo, na corte do Papa Clemente IV. Foi regente de Teologia em Nápoles, entre 1272 e 1273. Morreu a caminho do Concílio de Lyon, para o qual havia sido chamado pelo Papa Gregório X, em 1274. Santo Tomás foi canonizado em 1323 pelo Papa João XXII e em 1567, o Papa São Pio V proclamou-o Doutor da Igreja, com o título de Angélico.

[2] Alguns documentos da Igreja evidenciam a grande estima que os Papas têm pelo tomismo. Cito como exemplos a Encíclica Aeterni Patris (1879), de Leão XIII; a Encíclica Studiorum Ducem (1923), de Pio XI; e a Encíclica Humani Generis (1950), de Pio XII. Segundo o Papa João XXII: “Ele [Santo Tomás] só alumiava a Igreja mais que os outros Doutores; nos seus livros o homem aproveita mais em um ano que durante toda a sua vida”; segundo São Pio V: “A Igreja fez sua a sua doutrina teológica, por ser a mais certa e a mais segura de todas”; segundo São Pio X: “Se a doutrina de algum Santo ou de algum Doutor foi recomendada por Nós, ou por nossos Predecessores, com louvores especiais, estando esses louvores unidos ao convite e à ordem de a retomar ou defender, facilmente se entende que foi recomendada na medida em que está de acordo com os princípios de S. Tomás de Aquino ou que a eles não se opõe de modo algum”.

[3] Muito embora não se encontre, na extensa obra de S. Tomás, tratado algum dedicado diretamente ao belo ou a algumas das chamadas belas-artes. De fato, o que existe são breves passagens sobre esses assuntos em meio aos seus textos sobre metafísica, teologia ou outros temas, o que, pondero, não impede a presença de uma teoria estética coerente em sua obra. Diz Tatarkiewicz, em sua Historia de la Estética: “Tomás de Aquino não somente não escreveu tratado algum sobre o belo mas também não dedicou um capítulo sequer de seus escritos e, não obstante, em suas observações dispersas disse mais a respeito do que outros em livros inteiros dedicados ao tema.”

[4] Editora Appris, 2018: https://www.editoraappris.com.br/produto/985-esttica-musical-em-santo-toms-de-aquino

Prof. Thiago Plaça Teixeira

O Professor Thiago Plaça Teixeira é Graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Paraná, Bacharel em Piano pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná, Mestre e Doutor em Música pela Universidade Federal do Paraná. Foi premiado em concursos de piano e atuou com diversos instrumentistas, cantores e grupos corais em concertos, óperas, festivais e séries de música de câmara. Trabalhou em instituições de ensino superior no Paraná ministrando disciplinas teóricas e práticas. Como pesquisador, direciona seus estudos à música sacra católica, área em que também tem experiência prática atuando como organista.

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